ANTIPOESIA

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ANTIPOESIA

quarta-feira, 14 de abril de 2021

CONSTRUÇÃO II

 

 

***

 

NAVEGANTE




      se queres

      aprender a orar

      faz-te ao mar

 

      todos sabíamos

      que aquele navegante

      perfumado de sal e maresia

      se deixara há muitos anos

      no esquecimento das fábulas

      de proferir orações mesmo as breves

 

era um animal marítimo a morrer todos os dias

nos raios de sol na espuma branca do vento de sueste

nas vagas aterradoras e ondulantes do fogo nupcial

 

não se escondia na aura das muralhas impenetráveis

onde as palavras transbordam e as mentiras abundam

em propícia ladainha enovelada por algas costeiras

 

      conhecíamos-lhe todos os vícios

      que o devoravam enquanto vivo

      queimando-o até à medula

      mulheres e vinho

      o rum do entardecer alumiado

      por fêmeas devoradas

      na rapina das horas suaves

 

      os recessos inexplicáveis

      de uma biografia sem história

 

a lenda viva dos passos certeiros

à margem das grandes massas de água fosforescente

potência desconcertante do medo

na  velha camisa rasgada por unhas celestes

 

      por vezes

      tão humano como searas de pão

      viçoso clarão da suprema energia

      em branda floração

 

      outras

      animal em faúlhas

      a romper os pulmões das estrelas

      a escrever com os dedos de cristal

      no tabuado do seu velho barco em botão

      obscenidades e verdades cruentas

      seladas pelo estilo sóbrio do amanhecer

      ou da loucura embalsamada do entardecer

 

      a melancolia feroz do destino era-lhe alheia 

      também o pesadelo das rugas sulfurosas

 

      decifrava as coisas ocultas

      os frutos maduros das aparências

      a perfeição dos diamantes ao luar

 

      com a noite chegavam os cios

      em que humano se divinizava

      com os olhos nas palmas das mãos

      estriadas pelas escotas de pedra

 

      afundava-se na matéria da casa flutuante

      onde todas as mulheres

      eram sombras rítmicas

      e os desejos

      o cercado inviolável da besta ferida

      na urgência da dança sísmica

      dos corpos glorificados

 

      sem razão poisava a boca

      nas formas decadentes

      abrindo à sua passagem

      a transparência da volúpia

      numa humidade tão exacta

      como chama a luzir no horizonte

      promíscuo do prazer

 

      para que queria ele

      aqueles momentos

      em que os astros arrefecem

      e as luzes ressuscitam

      na saliva adocicada a razão

 

      o desatino erecto da nudez

      abria o portal do covil amoroso

      com um estrondo a reluzir

      nos espasmos implacáveis

      cifrados em mapas antigos

      atulhados de praias desertas

      orladas por jardins onde as paisagens

      foram inscritas pelo nó

      das labaredas em combustão

 

      pouco ou nada dormia

      respirava as brisas quentes

      que se esgueiravam pelo tabuado

      deixando o corpo dormente vacilar

      na alucinação dos sonhos

      e na serenidade cravada no beliche

      encerado pelas artérias explosivas

      do sono supérfluo

 

      quando as velhas adriças batiam

      contra o mastro imperturbável

      num toque rimado

      ouvia os pescadores na barra

      com as suas lanternas e motores ruidosos

      como prédios amontoados

      nas trevas da cidade

 

      indiferente

      olhava as escotilhas apavoradas

      pela negritude desordenada

      e ouvia o balouçar da água

      nos ramos verdes da enseada

 

      afinal

      tinha sido sempre o rosto do mar

      a mão das nuvens

      o coração do sol

      o espelho da liberdade e da imprudência

      o lazer abrasado e confiante

 

que poderia deus dele querer

 

      quando a ondulação

      sustinha na crista das vagas

      a respiração enlutada

      ainda sóbrio

      sentava-se no bar sobranceiro ao cais

      apertando a fronte como numa alucinação

 

      pelos espelhos de vidro suado

      desfilavam as cicatrizes

      dos corpos de mulheres em rebentação

 

      alguns embriagados nas mesas

      orvalhadas de iluminações insondáveis

      suspiravam sílabas roucas

      nadadores das profundidades

      feitas frestas no limbo exótico

      e acabrunhado das crianças

      mortas e por baptizar

 

      àquela hora na igreja matriz

      a missa do sétimo dia

      por alma de seu pai

 

      um montanhês tão rigoroso

      como o gelo da calota polar

 

      tinha chegado do mar

      no crânio um grito desfraldado

      fazia estremecer a rede oculta

      do nome das coisas insensíveis

      à dor e à morte

      a crepitar nas fornalhas do esquecimento

 

cruzou os braços e clareou o espaço

com os relâmpagos da harmonia crescente

ele era o seu próprio templo

 

      cristão por baptismo

      trocara a igreja por uma garrafa de rum

      a seiva divina vertida em longos copos raiados

 

      sozinho

      trocara o seu reino por um tonel de vinho

 

o prodígio das bênçãos

cadeias de oiro bravio

a pedra escura no rio

da infância submersa

com ele nobremente trajado

de mão dada pelas lojas

chiques da baixa pombalina

e pelo chiado

memória de tempo ido

de um amor agora sofrido

 

      a chaga de todo um corpo vazio

      a mãe estaria lá

      negra de carvão vestida

      os amigos      os indecisos      a família

      lembrariam o nome com outros nomes

      de forma célere e contínua

      falariam dos mistérios

      e em segredo dos dogmas

      da redenção das coisas de casa

      sempre com o espírito ausente

      e algumas lágrimas insulsas nos dedos 

 

seria preciso escalar

as montanhas lunares

reduzir a cinzas

a matéria estelar

destroçar os cometas ameaçadores

para olhar com agrado

a terra carregada de silvedos

entrançados nos maxilares da paixão

entoação salvífica de falsos credos

 

      olhou para dentro de si

      engolindo um punhado de medo

      sentiu a queimadura da alma

      o sangue a ferver e pausadamente

      debruçou-se na ordem das ideias frias

 

      tudo lhe parecia coroado por anémonas 

      membranas e tendões

      na abertura dos portais da consciência

      apunhalada com ferocidade

      por suas próprias mãos

 

valia-lhe mais estar ali

galvanizado por memórias

no pavor dos cantares inebriantes

 

despejou com deslumbre um outro copo

nele o poder da criação solitária da compaixão interna

tesouro esbraseado fundido no recanto

mais obscuro do seu castelo de pranto

tudo resolvido ou por resolver

na ignição côncava das expressões inconscientes

              da arte de entrar em si

              de se amar

              e florir fértil

              num mundo por deus abandonado

 

 

      costumava sentar-se nas rochas

      passajadas e batidas por golpes de mar

 

      umas vezes tão terno

      floco de neve nas mãos da criança marítima

      outras violento soldado

      com a mão direita a tremer o gatilho da morte

      - lembranças de um amar perdido e do ultramar -

 

só custa matar a primeira vez

a partir daí

matar e ver morrer a quem não se quer

é tão normal e arrepiante como amar corpo

que se não conhece

 

      parecia estar cansado da vida

      dos homens na marina-passadeira

      de pernas    sapatos    roupas de marca

      e sorrisos elegantes e asnáticos

 

      raramente olhava as fêmeas em cio exuberante

      e os falsos navegadores

      e quando olhava o seu olhar

      atravessava a carne e as vísceras e ossos

      fixando-se num além indecifrável

 

via-o do meu veleiro

quando nas noites de luar

preparava o aparelho

para soltar as amarras da mente

na vastidão das águas pintadas de escuro azul

 

o seu rosto era sempre o mesmo

rugas torneadas pelo sol da angústia leitosa 

 

      pouco lhe interessava a ferida

      que o meu pesado patilhão

      abria no coração do mar

      fazendo-o sangrar

 

      as minhas velas lembravam-lhe

      as asas duma gaivota esfomeada  

 

nunca quis partilhar uma viagem ao alto mar

dizia-se velho e costeiro

apesar de nele inexistir qualquer medo

existindo tão-somente aquele respeito

que só os verdadeiros mareantes têm

 

o seu olhar circular envolvia todos os oceanos

com seus cabos tormentosos

temporais e calmarias 

horn e boa esperança

 

      hoje não o vi

      dizem-me que morreu

 

      o último dos navegantes do sonho

      reduzido a cinzas

      sepultado no horizonte do seu olhar

 

 

***

 

 

UM CONTO DE NATAL

 



Foto de João Tilly – Serra da Estrela

 

 

      tio zé ferreira assomou à janela do casebre

      quando o dia começava a clarear

 

      a neve caía em pequenos flocos

      com suavidade e doçura

      afagando a terra deslumbrada

 

      nos seus oitenta e cinco anos

      com os caminhos intransitáveis

      bastas vezes passara um natal nevado

      anos para si incontáveis


      do casamento com a santinha

      como carinhosamente chamara

      à companheira das longas invernias

      nasceram três filhos

 

      o mais velho morto na guiné

      numa guerra que nunca conseguira entender

      o do meio com vida feita em terras de frança

      e a mais nova nas américas

      casada com um filho de emigrantes de folgosinho

 

tanto sonho

tanta alegria

tanta esperança

pusera na sua vida

quando agora

apenas tinha por companhia

o seu cão

o sofrimento

e o vinho


      a santinha

      madalena de seu nome

      abandonara-o há treze anos

      com uma daquelas amaldiçoadas doenças

      em que os médicos

      mandam os pobres morrer em casa

 

      desde aí

      o pequeno casal que sempre habitara

      nunca mais fora o mesmo

 

      a senhora morte arrastara consigo

      as réstias de felicidade que ciosamente

      guardava na alma envelhecida

      e já saudosa do amor ausente

      de um filho que uma mina

      despedaçara ainda moço


a televisão alimentada por painéis solares

trazia-lhe notícias de um mundo que não conhecia

e se recusava a aceitar e compreender

naquela caixa cheia de imagens apregoava-se

paz   justiça   caridade   solidariedade   humildade enquanto guerras e crimes se multiplicavam

e a corrupção o compadrio e o aproveitamento próprio

eram as regras duma sociedade falida

que se apregoa moralista e justa

mas é imoral degradada e injusta

sociedade que até parece aplaudir os homens

que abusam de criancinhas

os governantes que enriquecem à custa do povo

e os que matam gratuitamente em nome de deus

ou de um estúpido nacionalismo


      o vale serpenteado pelo mondego

      e ladeado pelas montanhas imponentes

      a companhia do fiel

      seu amigo de quatro patas

      davam-lhe o alento suficiente

      para continuar vivo

      atenuando-lhe o sofrimento

 

triste é o vale que não tem um rio que o atravesse

como triste é o homem que não tem paixões

pensava ele naquela forma simples e sincera

que é desconhecida aos poetas e filósofos


      a neve continuava a cair

      agora com mais intensidade

      estava na hora de acender o lume

      para quebrar o frio gélido

      que se entranhava nos ossos

      através das carnes ressequidas

 

      os animais estavam acomodados

      e o fiel enroscado a um canto

      olhava-o com uma expressão de ternura

      que só o cão do pastor tem

      por conhecer a solidão

      e a paz da natureza sem gente

 

      ajeitou as mantas da cama velha

      e sentou-se vagarosamente

      na cadeira junto à lareira

      com os olhos postos no fogo

 

      caíram de seus olhos duas lágrima

      que deslizaram pelo rosto rugoso

      na cruel lembrança dos ausentes

 

mais logo seria noite de natal

noite vazia como tantas outras

triste e branca como quem se despede

da virgem na cova da iria


      as horas foram passando lentamente

      enquanto pela memória recuava ao passado

 

por momentos o padecimento

era mitigado por um eterno agora

quietude sem tempo

realidade de um fogo crepitante

envolto em farrapos de neve

vindos de um céu que começara a escurecer

estado altamente sensível na sua intemporalidade

 

                 o encanto da noite nascente

                 não pertencia a este mundo

                 mas o seu coração sofria doente


      pôs a panela de ferro ao lume

      para cozer as batatas e as couves

      escolheu uma posta de bacalhau

      e encheu um jarro de vinho

      comprado ao albertino em folgosinho

 

sobre a mesa colocou a toalha bordada pela santinha

e que havia servido para todos os dias festivos

o seu prato lascado   um copo   um garfo e uma colher

bem na sua frente o mesmo

 

a madalena iria estar ali com os filhos ao redor

saltando e brincando e pedindo um naco de centeio

barrado com manteiga e açúcar

enquanto lhe puxavam ansiosamente

pelas longas saias pretas

 

      quis chorar

      mas faltaram-lhe as forças

      os seus olhos haviam secado

      nas duas últimas lágrimas

      tal como seca

      o ribeiro da montanha

      no calor do verão

      - na serra nove meses de inferno e dois de inferno -


      preparava-se para comer

      quando a porta estremeceu

      com três pancadas sucessivas

 

com aquele tempo

ninguém se arriscaria a andar pela serra

talvez fosse ilusão dos desgastados sentidos

mas fora estava um homem de meia-idade

envolto num longo capote

de barbas grisalhas a tocar o peito

e olhos dóceis a pedir guarida

 

      mandou-o entrar

      partilhou a ceia em silêncio

      oferecendo-lhe o lugar

      que de direito pertencia à falecida

      pouco falaram

      há anos que a sua curiosidade

      se começara a extinguir

      e o desconhecido

      também não era homem de muitas falas


estranhamente um cálido perfume

invadiu o aposento e surgiu uma terna presença

abençoada e penetrante

como o clarão do relâmpago no cimo do monte

ou na imensidão do oceano ondulante


o homem parecia nada possuir

nem coisas             nem ideias

 

conforme chegou assim partiu

malgrado a insistência

para que se não fizesse ao caminho

 

 

      de imediato algo de sagrado inundou a casa e o vale

      cobriu a encosta e estendeu-se para além da serrania

 

      era o centro da criação

      que imperecível

      transcendia o tempo-espaço

 

passou a noite sem dormir

com o pensamento parado

tão presente quanto distante

 

de manhã raiou a aurora no céu sem nuvens

e era vago o contorno das montanhas cobertas de neve

 

      havia em si um sentimento de vastidão absoluta

      de imensa beleza e amor

      de total plenitude

 

      a sua mente

      no auge da paixão e da sensibilidade

      experimentava a essência das coisas

      sem que o pensamento interferisse

      numa verdadeira oração de silêncio

 

      havia uma infinita solidão que não era inerte

      mas viva

      preenchendo a imensidão do cosmos

 

      nela estava o principio e o fim de tudo

      e a sua visão era infindável

      ultrapassando rios e montanhas

      a terra e qualquer horizonte imaginável

      luz pura em inefável êxtase


o viajante era afinal o deus-menino

o deus que existe em todos os homens

e que transfigurou o seu coração

que pôde então adormecer na paz e na esperança

que só os justos e os pobres em espírito conhecem

 

 

 ***

 

2011

 


***

 

 

MANIFESTO

 


      já pensei tudo

      o que há para pensar

      parece-me

      apesar do que parece

      nem sempre 

      ser o que parece

 

      poderei ou não estar errado

      como tudo 

      numa vida inconsistente

      na impermanência dos dias consumidos

      como quem sorve sem saborear um cigarro 

      de fumo invisível

      ou mareia no mar encapelado

      e apenas espreita a estrada suja de asfalto

 

      afinal o pensamento não é ilimitado

      e a imaginação é o erro do desesperado

      que o mergulha na mais triste ilusão

 

      pensei o já pensado

      em caminho poento

      por muitos trilhado

      rasto de sangue vivo

 

      o pensamento é dor acutilante e opressiva

      é a enxovia torturante da falsa inocência

      da candidez e da castidade mental 

 

      pensei o que muitos outros pensaram

      mas poucos são os que o sabem

      por terem guardado esses pensamentos

      numa gaveta suja e sem fundo

      na torre subterrânea dos desejos inconscientes

      nas masmorras abissais das entranhas sórdidas 

      no espaço insignificante de seus bolsos rotos 

 

      pensei e penso

      que não vale a pena escrever

      que não me irão ler

      que não irão ter paciência

 

      livros há-os em demasia

      editoras em insolvência

      como riqueza e pobreza

      editados dia-a-dia

 

neste mundo

tudo é demais

por excesso ou insuficiência

 

      no entanto

      a questão de deus

      o deus verdadeiro que não o dos homens

      continua a ser pendência fulcral 

      quando eu 

      eu mesmo 

      deveria ser o objecto 

      selecto de minhas inquietações

 

quem sou

donde venho

para onde vou

 

      se sou ou não

      se vim ou não vim

      se vou ou não vou

 

      se ele é

      se eu sou ele

      ou ele eu

 

      se existimos

      ou não existimos

      pela ilusão

      ludibriados sermos

 

      se tudo é delusão

      o sonho realidade 

      a realidade sonho e

      no desvario do engano

      se embromado estou

      porque padeço atroz  

 

      e porque algo permanece

      em vez do nada

      desse vazio pacificador

 

      e se nada existisse que voz se levantaria

      a questionar que corpo ou mente sentiria dor 

 

      também a questão da alma

      merece especulação

      e se quem conhece a alma 

      conhece deus

      fico-me com um único mistério

      o da alma-deus ou o do deus-alma

 

tanto faz

se o que penso só serve

para alimentar a confusão

e o que escrevo 

não passa de incoerência

ou de pura ilusão

de quem pensa ser e não é

 

                     melhor seria

                     exterminar o desassossego

 

                     melhor seria não pensar

 

 

para quê manifestar o que ninguém quer ver manifestado

 

            um manifesto para a humanidade

            um manifesto para a eternidade

 

      num manifesto escreve-se 

      escreve-se para que poucos leiam e 

      poucos sintam enquanto 

      nenhuns praticam

 

redige-se nas areias

límpidas da beira-mar

em tempo de marés vivas

 

nem na gandaia um sem-abrigo olhará as suas letras a formar palavras indecifráveis

nem um letrado filósofo da orla marítima se dignará prestar-lhe atenção

nem os cães que passeiam seus donos junto à rebentação das magníficas ondas irão sentir seu odor ilusório

 

      um manifesto escritura-se

      de preferência num papel velho

      digno

      com cheiro a velas de catedral

      e fisionomia de monumento nacional

      protegido ou censurado por leis obsoletas

      anacrónico    anárquico e dissonante

 

      um manifesto é sempre extemporâneo

      como navio calafetado no fundo dos mares

      ou vela acesa num qualquer meio-dia de primavera

 

      tem-se esperança num manifesto

      como mãe que aguarda o nascimento de um filho

      ou a sua chegada da guerra

 

      um manifesto é um nado-morto

      um estropiado em combate

      um corpo num ataúde

      numa urna de chumbo

      carregado além-mar

      crivado de fragmentos

      e marcas de dor oculta

      sangrada por estilhaços 

      de vida sem sentido

 

apenas três palavras

podem mudar o mundo

três palavras cheias e não ocas

porque as ocas são apenas palavras

e as palavras não são as coisas

nem sentimentos  nem emoções

as ocas são o reflexo da humanidade

no espelho poeirento sujo e deformado

do cérebro do tempo

 

apenas conheço três palavras

capazes de abranger o universo

amor     liberdade          beleza

 

palavras deturpadas pelo pensamento

esventradas por acções oportunistas

dos que interpretam a realidade em

conformidade com seus deformados umbigos

 

 

se algum dia as atingir em sua verdadeira essência já não mais serei eu 

serei um-com-deus

e quando for um-com-deus não irei perder tempo a escrever

nem a pensar

 

deus não sabe ler

e a alma

não especula



***

 

 

PSICOGRAFIA

 

      aqui cheguei sem saber donde

      daqui parti em travessia 

      cujo destino desconhecia

 

      do nada para o nada 

      que tudo é e será

      verdade vedada 

      pela ilusão da matéria

      pela ilusão da própria ilusão

      que a si mesma se lamenta

     

 

         guarda as lágrimas

         para os males do mundo

 

         se te amas não te lastimes

         se te amas não te deplores

         se me amas não me chores

 

comigo nada transportei

nem a sombra dos bens que acumulei

 

não vejo realidade

no que realidade não tem

 

estou liberto da ilusão

aliviado das trevas de maya

da injúria e do louvor

 

não voltarei a conhecer a dualidade

tudo é um

 

         suprema beatitude a da unidade

         na mansão eterna do amor gratuito

 

      ceifei com o gume

      da espada dos justos 

      as amarras da dor

      e vogo agora

      num mar de êxtase

 

      eu que sou

      o sal que se dissolve

      no oceano da vida

 

      o sol que brilha no todo

      o tudo que no tudo se decompõe  

      o que na pura alegria 

      da beleza e do amor sem fim

      se refugia e

      enquanto a noite escura vos ilude

      trespasso o universo 

      a infinitude de formas mortais 

      sequiosas de divino afecto 

 

            meu corpo ardeu e fez-se brasas

            as brasas fizeram-se cinzas

            as cinzas vaso de recordação

            enquanto em morada eterna vivo

            num horizonte de ternura infinito

 

      o pote de argila desfez-se

      em cinzas no fogo ardente

      as cinzas subiram nos céus 

      depositando-se em partículas no solo violado

 

      o meu coração incandescente já não existe

 

      cinzas são apenas cinzas 

      derramadas noutras cinzas mortas

      que não sujam nem são sujadas

      não ofendem nem são ofendidas

      não humilham nem são humilhadas

 

destruído o vaso de argila

desagregaram-se para todo o sempre 

os sentimentos negativos

mesmo os mais profundos e obscuros 

os desejos e as paixões

o eu mortal inconstante e impermanente

animal ferido na floresta minada de perigos

que se agita inquieto e angustiado

 

extinto o desejo

aniquiladas as paixões

com a mente apaziguada

na tranquilidade do vazio

penetrei a alma

onde ele reside

 

não há orgulho que consuma o que está consumido

 

      atingi a minha morada

      o mundo deixou de me seduzir

      não me choro nem vos choro

 

não me peças perdão

perdoa-te

 

na terra das searas do pão eterno

não há nada a perdoar

tal como não havendo ferida

não há enfermidade para curar

 

a minha morte tem um gosto amargo 

para os que em vida não souberam morrer

sou um pastor com o rebanho tresmalhado 

nas pastagens para sempre verdes

do vale doirado da reunião

confundido pelo medo agonizante

do dia da vossa perda

 

      amo e sou amado

      para além de qualquer

      condição ou contradição

 

      cuidarei de vós de mãos dadas 

      com quem de mim agora cuida

 

      que em vós não haja mais orgulho 

      ganância  ou ambição

      que nada vos afecte

      nem calúnia

      louvor

      ou insulto

não recebais

tais presentes envenenados –

devolvei-os aos seus doadores

 

         peço-vos paciência

         peço-vos esperança

         peço-vos caridade

 

      sigam o amor

      sem ódio    rancor ou raiva

 

que os rios caudalosos vos não atormentem

que as montanhas em queda vos não apoquentem

que cada passamento seja uma lição

vençam a morte em vida

façam florir o lótus em qualquer estação

 

         aguardo por vós na luz

         na terra da alegria infindável

         chamada reino

 

podes ter tudo o que quiseres 

somar matéria à matéria

acumular bens

ostentar riqueza e poder

mas não terás descanso

enquanto não cremares o desejo

não destruíres o apego

o falso ser e o ter

 

      dedica as tuas acções

      àquele de que me alimento

      e fica onde estás 

      ou parte sem partires

 

      todo o lugar é templo de adoração

      e o maior de todos a tua alma

 

      quem o conhece

      conhece a alma do mundo

 

fica onde estás

não o procures de igreja em igreja

de peregrinação em peregrinação

ele está no mais profundo de teu coração

fica onde estás

mesmo ausente

alivia o jugo da tua mente 

 

            morto o desejo

            vive para a eternidade

 

o caminho é estreito e pedregoso e a porta inabalável

clamai por ele para que o trinco de seus portais se abra

 

            sejam felizes em vida e na morte

            não me chorem

            não se chorem

            festejemos este dia

            na paz dos tempos

            na terra chamada reino

 

só é feliz

quem o bem

tem dentro de si

 

faz o bem

 

essa é a tua única missão

todo o resto ilusão

 

guarda as lágrimas

para os males do mundo

 

se te amas não te lastimes

se te amas não te deplores

se me amas não me chores

 

faz o bem

 

 

 

***

 

 

02/11/2010

 


 

UMA COLÓNIA BRASILEIRA



      o dia está acinzentado 

      sem estar abafado

 

      no quiosque junto ao meu prédio

      uma velha entediada queixa-se do verão

 

      terei de passar as férias nesta solidão

 

      respondo sem pensar 

                                     isso não é verão

      e sigo o meu caminho na direcção

      de uma bola de berlim e de um café curto

 

noto que os seus olhos me seguem

sem saber porquê seguem os meus passos e sua sombra

 

      julgo que pensa 

      boa vida           tão novo e sem nada para fazer

      ou lê ou finge ler com o livro debaixo do braço

      quem lhe dera a ela uma melhor reforma

      para passar os dias a fazer ponto de cruz

      e arraiolos exercitando a prática da morte

 

na esplanada há uma espécie de tristeza amargurada

uma morte viva      melancólica      estúpida      fastidiosa e triste

a tristeza do tédio opaco de vagos pensamentos sem rumo ou destino

de pequeno veleiro engolfado nas águas letais da barra

 

      penso e pergunto-me porque existo 

      reparando como quem não repara 

      na existência de duas lésbicas na mesa ao lado

      e de um homem sem cabeça com um jornal desportivo

      a servir de pára-sol na mais afastada

 

há sempre alguém com um jornal desportivo a servir de cabeça

há sempre alguém que discute a asinina política desportiva

há sempre alguém que vive como bola de borracha

pontapeada por mancos acanhados 

 

o homem levanta-se e eu sinto-me serenar

como quem está para urinar há horas e não encontra lugar

sinto-me aliviado

tenho espaço 

preciso de espaço para me questionar se o meu verão

não será um quiosque com horas certas de abertura

e encerramento fumado por um marlboro

ou um jardim em que as rosas florescem no inverno

e a geada queima os crisântemos no estio ardente

 

uma das lésbicas assoa-se limpando-se do passado

passa lentamente com os dedos pelas narinas

removendo pequenos filamentos

de incompreensíveis sentimentos de culpa 

a outra está imóvel

sorvendo o fumo de longo e fino cigarro

olhos postos nos automóveis de luxo que passam na praça

parece procurar presa

 

é o macho penso

como quem está ausente da razão 

mas que tenho eu de julgar

apenas factos 

quedemo-nos pelos factos

 

      os seus olhos penetram fixamente

      os mesmos objectos em que os meus se demoram

      mulheres

      mulheres belas e elegantes

      somos ambos predadores 

      indiferentes um ao outro

      apesar de ambos sermos lésbicas

 

jovens-mulheres desfilam seminuas mirando-se nos vidros das lojas que servem de espelho 

a maioria brasileiras

compenetradas no seu encanto

algumas andam dançando e pelo canto do olho

admiram o seu jeito peculiar de andar

o seu modo especial            provocante bamboleio

em pernas altas    baixas    médias    magras    gordas    redondas 

pernas para todos os sabores

pernas para todos os odores

eu olho-as a lésbica também   

 

      o verão seria diferente se me apaixonasse

      as lésbicas casar-se-iam

      eu igualmente

      sem boda       odeio banquetes          festanças

      as lésbicas levantam-se     ainda não almoçaram

      levanto-me e mudo de mesa

      volto a sentar-me

 

      lá dentro uma jovem almoça

      com roupa de ginásio

      e com o saco de desporto caído ao lado

      pequena

      magra

      graciosa

      de olhos penetrantes

      distantes

      não demonstra interesse em nada que a rodeia

      pede o serviço à atenciosa empregada brasileira

     sem se dignar olhá-la

     - todas as empregadas são brasileiras -

 

olho-a mansamente entre o espaço de duas colunas irregulares de fumo

lembra-me uma namorada antiga na sua frágil beleza 

a mesma de uma flor exposta ao rigor do tempo

ou de uma erva da calçada com displicência acalcanhada

 

      sentam-se duas brasileiras

      uma talvez não seja

      quase a não ouço falar

      a outra fala sem cessar

      menopausa precoce 

      afrontamentos e verborreia

      mesmo querendo não a ouvir

      sou cativo da voz

      penetrante

      irritante

 

as brasileiras invadiram-nos       estão em todo o lado

portugal

é uma colónia brasileira

para gosto de uns e desgosto doutras

 

por mim     por vezes      projecto viver no brasil 

partir para itacaré ou uma praia deserta no norte

onde possa erguer velas ao vento e bolinar largo

junto à costa de sereias intocadas de ventres cor de bronze

e seios hirtos apontando o horizonte 

 

      navegar no amazonas

      sorver o odor da selva

      escutar o louco canto das aves brilhantes

      com uma amada a bordo estirada nua no convés 

 

      a meio-navio envolta no cordame de seda

      uma nativa escura e bela que ame por amar

      inebriada ao sol e afagos 

      a quem possa agasalhar no meu peito

      nas noites húmidas e fartas de estrelas cadentes

      enquanto o leme solitário manobra em faina segura

      levando-nos de mansinho com a proa a cortar águas

      para terra-de-ninguém

 

sonho mas que mal faz sonhar

senão o mal do próprio sonho

quando não há terra-mãe

 

      uma mãe entra com a filha ao colo

      qual delas a mais bela

      aprecio-a sem a desejar

      é de uma beleza intocável 

      pura 

      maternal

 

deixai-a estar enlevada

deixai-a repousar nas carícias embevecidas

que com o olhar dispensa à criança

é mãe o que lhe basta 

 

      a brasileira papagueia

      enquanto a amiga de óculos escuros

      para não ouvir simula que presta atenção

      gesticula    ri alto    meneia-se

      faz reiki      pratica yoga

      assevera que encontrou a paz

      tem sensações no corpo

      nalguns órgãos como se estivessem a ser

      miraculosamente limpos durante as sessões

      agora tem as energias equilibradas

      e os bolsos mais vazios e mais asseados

      mas age como quem em emboscada fatal

      de guerrilha está debaixo de fogo cerrado

      as mãos tremem-lhe e há um ou dois

      pequenos tiques evidentes que a traem

 

temos de viver o dia-a-dia

amar a vida   os outros e ter forças

diz

e ter energia     a que vem de nós    das nossas acções e a que nos canalizam

deve estar a referir-se ao terapeuta-canalizador        penso

ela que eléctrica e vertiginosa tem uma tomada mal ligada à terra

e um fusível inoperante ao excesso de tensões

e julga ser um braço-de-deus

- deus deve ser uma centopeia    penso e sorrio

disfarçando o sorriso na página do livro aberto -

 

      alguém      uma amiga da baía

      deitou-lhe as cartas

      encheu-a de búzios

      apenas certezas

      no passado não errou

      no presente acertou

      no futuro vaticinado abstractamente 

      tudo cursará o melhor leito

      será rica    feliz    amada    e finar-se-á bem tarde

      a boba encartada

 

convida a amiga para jogar golfe

com a equipagem do falecido

será viúva   divorciada ou mal-amada

instiga-a a aprender

o problema diz está nos tacos     as bolas são todas iguais

o mais importante do equipamento são os sapatos

 

            preciso de descansar os ouvidos

            volto para casa

            e no silêncio da solidão não penso nada

 

 

 

***

 

 

MAL-AVENTURANÇAS

 

 

      mal-aventurados os pobres de espírito

      porque serão embromados

      e pasto de burlões e vigaristas

 

      mal-aventurados os mansos

      porque serão objecto de injúrias

      e das mais terríveis calúnias

 

      mal-aventurados os que choram

      porque serão destruídos pela melancolia

      e por este mundo canibal devorados

 

      mal-aventurados os que têm fome e sede de justiça

      porque serão injustiçados

      em tribunais para ricos criados

 

      mal-aventurados os misericordiosos

      porque todos deles se aproveitarão

      simulando ser pobres e necessitados

 

      mal-aventurados os limpos de coração

      porque serão vilipendiados

      e na sua honra açoitados e sangrados

 

      mal-aventurados os pacíficos

      porque serão sempre agredidos

      e não responderão à agressão

 

      mal-aventurados os que padecem

      perseguição por causa da justiça

      porque nunca serão recompensados

 

 

bem-aventurados

os que tiverem coração de pomba

e espírito de serpente

neste mundo doente

e do céu ausente

 

 

 ***

 

2015

 



José Maria Alves

https://homeoesp.blogspot.com/

https://josemariaalves.blogspot.com/


 

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