ANTIPOESIA

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ANTIPOESIA

terça-feira, 30 de março de 2021

CONSTRUÇÃO I

 

 

 ***

 

 

O CAMINHO



 

     sigo o meu caminho

      atropelam-me

      vossos braços

      pensamentos

      fantasias e invenções

      vossas crenças e hábitos

      abraços e mãos

      memórias e ilusões

      trapaças e traições

 

      querem que beba de vosso vinho

      que caia nos vossos braços e me

      emporcalhe em vossa falsa verdade

      que me prenda aos vossas grilhões

      que convosco construa uma história

      de horrores  maldições e crueldade 

 

      a vida para vós

      é um castelo de cartas

      soprado pelos ventos

      uma colossal delusão

      besta sem compaixão

 

      um palco de terrores

      onde os fortes vivem

      e os fracos falecem

 

      vida de bens materiais

      aos pobres roubados

      projectos mesquinhos

      ambições e tabernáculos

      desejos insalubres

      doentios e amarelentos

      infinitos e orbiculares

 

      tudo se transforma num elo

      em frágil vontade do momento

      império que vedes e não vejo

      vã esperança de tempo ido

      preso às mais vis grilhetas

 

      imbecis e resignados

      burros de carga

      corruptos sem palavra

      pantomineiros

      invejosos

      compadres do oiro

      comadres do dinheiro

      ladrões e tratantes

      parceiros de canalhas

      abúlicos

      sevandijas

      mentirosos

      sendeiros

 

      sois tristes bestas de nora

      companheiros de criminosos

      matilha de escandalosos

      ratoneiros

      miserável gentalha

 

      sois vós sem vereda

      sem vergonha

      sem honra

      e sem piedade

      vermes da peçonha

      e da iniquidade

      que vos quereis

      ídolos da humanidade

 

      com três deuses que detesto

      oiro      sexo e poder

      que execro não por si

      mas por serem de vossa vida

      os únicos valores válidos

      reflexo pérfido e danoso

      de um mundo asqueroso

      vicioso e desalmado

      por vós criado

 

 

      não      não é esse o meu caminho

      não      não bebo do vosso vinho

      não      não sigo no vosso rebanho

 

 

      não respondo a perguntas

      não me justifico

      não presto contas a alguém

      não confesso minhas faltas

      vou e volto

      parto e fico

      comigo não vai

      nem fica ninguém

 

      não sou de parte alguma

      sou daqui e de todo o lado

      não tenho nacionalidade nenhuma

      sou cidadão do mundo

      que percorro andando

      sem qualquer lamento

 

      o meu caminho é meu

      eu sou o meu trilho

      nasci para morrer caminhando

      na terra e no firmamento

 

      peregrino na terra

      mendigo dos céus

 

      as horas passam

      eu envelheço

      os meus cabelos são brancos

      se fui jovem e forte

      hoje já avisto o senhor da morte

 

      os tempos felizes da infância

      não voltam

      da adolescência amores e paixões

      são estranhas lembranças

 

      ora me levanto

      ora desfaleço

      tenho sangue e lágrimas

      no peito e nos flancos

 

      não me acredito

      no vosso deus

      nem nos anjos

      nem no demo

      amarrações e feitiços

      bruxedos e maldições

      promessas e orações

 

      passo a passo desbravo

      cardos e silvados

      palavras   gestos e actos

 

      durmo num catre só meu

      a nada nem ninguém temo

      meu coração a espinhos lavro

      recolho no meu ventre

      desvalidos e violentados

 

      afogo na barra

      bandidos e beatos

      políticos e magistrados

      polícias e catedráticos

      e outros embriagados

      da riqueza apaixonados

 

 

      sigo meu caminho

      mar dentro

      navego

      altivo e sozinho

 

      serei sempre patrão do alto

      na vida e na morte

      será essa a minha sorte

 

 

      tendes o vosso caminho

      florido por perfídias

      vós os quarenta ladrões

      que vez à vez

      ides à missa

      tendes ilusões

      rezais o terço

      ides às procissões

      viveis das vestimentas

      das aparências

      da toleima e da burrice

      da hipocrisia

      da impostura

      do cinismo e avidez

      das mentiras e vigarice

 

      tendes partidos

      clubes

      gurus

      televisões

      canastrões por ídolos

      telenovelas

      concursos e discursos

      políticos ladrões

      advogados manhosos

      médicos rançosos

      cães raivosos

      e uma bandeira

      suja de sangue

      dos famintos

      e dos inocentes

 

      sois covardes

      sonâmbulos e astutos

      viperinos sabujos

      vermes do poente

 

      tendes filhos

      fraca semente

      futuro negro

      que a si próprio

      se desmente

 

 

      sigam-no vocês nessa planície

      onde o traçaram na imundície

      sigam-no vós gente demente

 

 

      eu sou apenas eu

      não vos pertenço

      não comungo do vosso pão

      não vivo da vossa vida

      tudo o que vos pertence

      me aborrece

      de vós não quero nada

      que me estorve a passada

 

      sigo o meu caminho

      de mão dada comigo

      sofrido e sozinho

 

      o meu caminho é meu

      o meu caminho sou eu

 

      não me estorvem

      não me digam nada

      deixem-me passar

      que nesta estrada

      vossos passos não cabem

      e nela é o meu lugar

 

 

      não quero o vosso caminho

      não bebo do vosso vinho

 

 

      vou e volto

      parto e fico

      comigo não vai

      nem fica ninguém

 

 

 

***

 

 

 

10/2014

 

 

 

 ***

 

 

MIRITO O MEU AMIGO LOUCO

 

Bronzino




      mirito nasceu 

      nasceu num palheiro 

      como jesus

 

      paredes de pedra rude 

      à mão amontoada 

      pedra não aparelhada 

 

      telhado de colmo

      donde se espreitavam as estrelas

      e sentia a chuva fria

      entrada em dia de borrasca

 

      na torre da igreja o sino tocava

      e voltava a tocar

      na dança do ar perfumado pela geada

      que começava a cair no vale

 

      mirito nasceu de rosto belo e já trigueiro 

      ao som da ave-maria tocada noite e dia

      no campanário da pequena aldeia 

 

      que deus o abençoe disse a mãe 

 

      que a senhora da fátima

      seja sua madrinha

      e lhe faça a cruz na testa

      para afastar demónios e tentações 

      disse a parteira da aldeia

      tia zefa do moinho 

      a zefa da anunciação

 

      a vizinha madalena

      rezou um padre-nosso 

      e uma oração calada

      para ninguém ouvir

      a não ser nosso senhor

 

      não te esqueças mulher

      de acender uma vela

      na santa eufémia 

      uma vela do tamanho do rapaz

 

      tanto faz 

      respondeu a parturiente 

      a vela terá o porte da minha bolsa 

      o que vale é a intenção 

      e olha que a tua oração

      não irá cair em cesto roto

 

 

      mirito nasceu

      mirito cresceu

 

 

      nasceu em noite de luar

      de sombras a afagar a pobreza

      e com o sino a tocar     a tocar

      prenúncio de tristeza

      anúncio de morte a bailar

 

      na escuridão a luz

      no altar a cruz

      que mirito haveria de carregar 

      correia a enlaçar 

      de aldeia em aldeia 

      cantando e dançando melodias desconhecidas

      até que um qualquer arimateia 

      o levasse a sepultar em cova funda e anónima 

      depois de o encontrar caído na curva da estrada

      poeirenta e resplandecente de luar

 

      encontrá-lo-ia

      agonizante sem remédio nem cura 

      sem glória 

      com a senhora da morte ao lado

 

 

      diria se pudesse

      estou certo que miro diria

      se o soubesse exprimir 

      leva-me para o norte que calor não suporto

      leva-me para o norte onde é doce a morte 

      doce e alva de neve pura 

      onde perco a memória 

      de vida mal-afortunada

 

      eu sou o mirito doce e suave

      gentil        louco e sem dono

      a vida que em vós não existe 

 

      sou o próprio norte 

      a liberdade 

      a tristeza 

      e a força da natureza

      eu sou tudo o que o homem não é e despreza 

      não sou como os demais

 

      sou miro 

      servo e dono

      da terra 

      dos céus 

      das estrelas 

      de bonanças e temporais

      e quero ser sepultado em cova funda 

      onde animais e homens não possam 

      nem encontrar 

      nem importunar

      que ressuscitar não quero

 

      quero conforto

      quero a paz

      que a embriagado

      louco e morto

      ninguém deve furtar

 

      que assim seja

      tenham dó de mim

 

      mirito cresceu descalço 

      roto 

      esfarrapado

      com sobretudo

      de alto a baixo rasgado

 

      sobretudo do inverno 

      sobretudo do verão

      sobretudo da chacota da garotada da freguesia

      crueldade de rapaziada

      para com o pobre desgraçado 

      que andava    caminhava e se sóbrio

      se escondia em qualquer pinheiral

      ou no mato de olival por tratar

 

      mirito não foi à escola 

      não aprendeu a ler 

      a somar 

      nem seu nome aprendeu a escrever 

      mirito não aprendeu a brincar

 

      não foi à escola e de nada lhe serviria

      contava até dois e depois 

      qualquer número servia

      oito   cinco   dez   quatro 

      raramente mencionava o três

      letras não as conhecia

      nem o   a  e  i  o  u

 

      falava entaramelado 

      mas asneiras dizia 

      escorreito quando o arremedavam

      essas eram poucos os que as não entendiam

 

      mas na escola não se ensinavam

      apenas se aprendiam

      e quem as já conhecia 

      afinal que proveito tirava de horas mortas

      a inquietar outros garotos

 

      nunca aprenderia a ler 

      a contar 

      ou escrever

      e mesmo que algo aprendesse 

      seria necessário querer 

 

      por injustiça assim nasceu 

      vagueando ora soturno 

      ora alegre feito bobo 

      percorrendo

      aldeias

      povos

      quintas

      sendo escorraço de quintaneiros

      pouco falando 

      por não querer 

      ou não saber que dizer

 

 

      mirito cresceu com o vinho

      e com aquela cabeça tonta

      que desagrada aos homens e agrada a deus

 

 

      um copo aqui outro além 

      por alma de quem lá tem

      vá lá um copo não faz mal

      é mirito quem diz

      vá lá por um momento

      faz mirito feliz

 

      vai-te embora rapaz 

      o vinho ataca-te a moleirinha 

      ficas mais estouvado do que és

      bebe sumo 

      um pirolito 

      uma gasosa e 

      dou-te um quarto de trigo com manteiga da arca

 

daí o enganava o taberneiro intentando besuntar o pão com margarina da lata suja ou com molho velho das iscas a saber a ranço

 

quero vinho o resto come-o tu              replicava miro

e o pobre mirito crescia enquanto o sobretudo encolhia

 

 

      os rapazes vinham dos campos 

      alguns tocados à paulada da lavra por acabar

 

      jogavam à bola no terreiro

 

      mirito passava e seguia sem saber para onde 

      olhando saudosamente para trás

      saudades sem saber de quê

      saudades porquê

 

      os rapazes brincavam com as raparigas 

      dizendo-lhe coisas de que todos se riam

      mirito sorria por ver rir mas não entendia

 

      diziam-lhe 

      cresce tonto

      depois se verá

 

      alguns namoravam um beijo às escondidas

    mirito sentia e sem saber como se fazia ficava triste 

      uma melancolia natural acompanhada

      pela ligeira brisa do pinhal ao lado do cemitério 

      onde ensaiava com trejeitos os beijos da moçada

 

      imaginava uma bela moça 

      como vira num jornal da venda 

      e que lhe valera um pontapé no traseiro 

      por olhar coisas de gente normal

 

      até a formiga-tonta

      já tem catarro

      disseram os homens

      que jogavam ao chincalhão

 

      mas a bela loira de cabelos longos 

      não lhe saía do toutiço

      afinal só olhara para uma fotografia

      suja de vinho e amarrotada de um jornal

      que parecia tão antigo como ele

      ele que tudo daria para ter aquela fotografia 

      como seria feliz namorando-a com os olhos

      todas a noites no seu leito de palha 

      seria abençoado se a pudesse beijar

      ainda que manchada e feita de papel

 

      essa loira cor de mel

      de quem se via um pedacinho dos seios

      estava-lhe na memória

      enchia-lhe a mente inocente

      não saberia o que fazer 

      talvez mexer de mansinho na carne luzidia

      talvez um beijo na face rosada 

      ou na boca de dentes brancos

 

      o restante desconhecia 

      apenas sabia o que nas partes baixas sentia

      e por instinto tão bem lhe sabia

 

      melhor lhe agradaria de outra maneira 

      dizia-se em segredo na venda ao domingo

      que por ter bom ouvido ouvia e ninguém lhe dizia

 

      ela havia de o ensinar 

      quem sabe se hoje à noitinha 

      e por acaso 

      aparecesse na curva deserta da estrada

      que vai do sobral à mata

 

      e sonhava

      sonhava o pobre louco

      que nem à escola fora

      a bola jogara

      na ribeira pescara

      e nunca amara

 

      e mirito crescia enquanto o sobretudo encolhia

 

      pobre miro

      pobre louco

      coitadito

 

      a sua cabeça rodopiava como carrossel

      da feira de são bartolomeu em trancoso

 

      e via 

      via coisas estranhas que o assustavam por momentos

      que rapidamente esquecia e que de súbito lembrava

      coisas do diabo 

      coisas assanhadas 

      arrepiadas

      que o possuíam e arrastavam pelos caminhos tortuosos

      na direcção de uma malga cheia de vinho avinagrado

 

 

      ó meu mirito

      sofres tu

      e sofro eu

 

 

      à noite 

      no palheiro 

      via demónios

      uns sentados 

      outros dependurados nas vigas

      de madeira velha e empenada

 

      das frechas do granito amontoado 

      soltavam-se espectros luminosos em riso rugido

 

      demónios 

      diabos 

      fantasmas 

      aparições

      espectros 

      diziam em voz rouca 

      em gemido tremelicante

      miro tu és doido varrido 

      bêbado 

      vai-te     vai-te 

      vai-te     não durmas 

      não te deixaremos dormir 

      vê          vês 

      vê a mulher loira de longos cabelos entrançados 

      é feiticeira 

      de todas a mais bela 

      de todas as aldeias que conheces

      vai-te enfeitiçar

      vai-te encantar

      serás um sapo

      e os rapazes irão pôr-te a fumar

      até rebentar

 

      foge miro 

      foge

      pobre diabo 

      foge para as sombras da noite

      deixa-os na tua corte 

      que fiquem com o curral

      que nem teu é

 

      que durmam na tua palha 

      nos panos velhos cor de carreiro poeirento

 

      carago     filhos de uma grande cabra 

      que me não largam

      raios os partissem 

      almas de trinta diabos

      tanto bento 

      tanta bruxa 

      tanto filho do demo

      e da puta 

      tudo para me causar tormento

 

      e mirito noite dentro 

      quilómetro a quilómetro 

      ia da mata ao sobral 

      do sobral ao ribeiro 

      do ribeiro à aldeia-nova 

      sem demora e tento

      até fulgir o primeiro raio de sol 

      até ao sol nascente

 

      quando o sol nascia

      o canto dos pássaros

      abafava a vozearia dos diabretes

      com figura de gente

 

      catano

      ora o caralho destas almas penadas

      uma coisa assim

      santo deus      ó jesus

      que porra        ainda lhes dou com o cabo do sacho

      calai-vos         que queres tu de mim

      deixai-me vós também

      não vos quero ouvir almas do demónio

      vá de retro satanás

      vai de retro belzebu

 

      miro desesperava

      miro gritava

      carago        inde-vos

 

 

      a venda abria e miro à porta da taverna 

      olhava mudo o taberneiro estremunhado  

      que já sabia ao que vinha

      que já lhe conhecia o vício

  

      um copo por deus para matar o chavelhudo

      um copo por nossa-senhora 

      um copo para suster a agitação

      cinco tostões para matar a sede 

      tostão a tostão para matar o demo

 

      pelas alminhas que com jesus lá tem 

      pelas que no velório aguardam o purgatório 

      com barrabás e o outro ladrão

 

      vai-te daqui agoirento 

      que a satanás encarniçado 

      nem vinho nem pão 

      pede-o a judas que é teu irmão

 

      um copo pelo seu descanso 

      por alminha de sua mãe

      e de seu pai também

 

      pela mãe  pelo pai há pouco falecido 

      agora sim tocara-lhe no coração

      por agoiro ou compaixão

 

      toma alma-do-diabo 

      bebe

 

      mirito bebia um   dois ou três e ia

      sem direcção   sem destino   sem querer

 

      pobre casmiro    pobre louco sem-tostão

      miro pobre-louco a quem as bruxas

      não deixavam sequer adormecer

 

 

      em pequeno passava à minha porta 

      ele já homem 

      eu rapazito

 

      tomava da gaveta alguns tostões 

      tia cândida via e fingia não ver o que via 

      fazia a vontade ao filho-sobrinho 

      que queria ser padre  

      e tanto amava 

      pobres 

      loucos

      velhos 

      doentes

      fracos

      e animais

 

      zéia que vais fazer                   perguntava

      nada de mais 

      vou ver o mirito que me chama do caminho 

      e logo interrompia as orações

      ou fechava o livro de horas

 

      dois ou três copos de vinho

      com cuidado escondidos 

 

      mirito cantava agradecido sabendo

      que aquela porta lhe estava sempre aberta 

      enquanto eu ingénuo

      o olhava embasbacado

      na sua dança estrada fora

      braços abertos a rodopiar

      voz rouca a soletrar língua

      que parecia ser estrangeira

 

      adeus mirito

      amanhã passa por aí

      eu peço à tia

      e mirito sorria

      e eu não sabia que sua alegria

      e minha felicidade

      de nada valia ao agravar 

      a doença de que padecia

 

      adeus mirito 

      pobre louco

      até amanhã 

      até outro dia

      à falta de capão 

      cebola e pão

      à falta de um tostão

      volta que te darei 

      do vinho da tia 

      palavra 

      tiro-o da adega 

      às escondidas

      ninguém vai ver 

      ninguém vai saber

 

 

      o sino toca para a missa 

      ou é para o terço

      não estou certo

 

      eu cresço

 

      mirito mais velho

      o sino tange uma morte

 

      eu estou no sul

      mirito no norte

 

      o sino toca a rebate

      arde a encosta poente do vale

 

      o incêndio belo ameaçador

      já lavra no monte

 

      eu estudo para doutor

      mirito cada vez mais doente

 

      o sino toca aves-marias

      eu já não rezo

 

      mirito o tonto não dança

      eu já não vou à igreja

 

      mirito com muita dificuldade caminha

      o sino toca               toca sem cessar

      e aquele pobre diabo está-me na alma

      na saudade que o vento frio da serra traz

      para as paredes negras da cidade

 

      saudade que rói e dói

 

 

      mirito pobre louco

      eu também sofro

 

 

      noite de inverno 

      temporal

      miro já não tem as mesmas forças

      nessa altura eu vivia num jardim de betão

      com uma nesga de céu acorrentado à liberdade

      miro está cansado              eu tenho depressão

      o sobretudo cada vez mais rasgado

      deixa passar o frio a chuva a neve

      para a roupa interior do esfarrapado

      o vento bramia

      vergava ramos de velhas árvores 

      retorcia as novas há pouco plantadas

      o vento gemia

      nas sombras dos olivais 

      nos espectros das nuvens baixas

      fazendo rodopiar as folhas caídas

 

      uma chuva fina e fria 

      que se entranhava na miséria 

      molhava-lhe a alma

 

      miro continuava 

      miro caminhava

      tinham-lhe dito 

      não te metas ao caminho 

      mirito não os ouvia 

      vou para a mata 

      vou dormir

 

      caminhava contra o vento 

      que rodopiava e rugia

 

      começou a nevar

 

      já não havia espíritos imundos 

      legiões de almas do outro mundo

 

      surgiram anjos alvos

      a bailar ao som do vento

      sinos a tocar aves-marias

      arcanjos que sorriam e o afagavam

      num leve arremesso

 

      a neve caía em desconhecida melodia

      melodia que nenhum bach comporia

      e vestia-o de branco puro

 

      miro parecia uma pomba no escuro

      um dominicano em êxtase de alegria

 

      mirito pobre louco sorria e ria

      dançando ao vento e à neve

      com anjos e querubins de verdade

      e jesus menino que assistia enternecido a ver

      tanto amor e liberdade

 

      chegado à curva dos sonhos

      da loira encantada

      miro cansado

      deixa-se tombar no valado

      exausto a dormir

      a sonhar com o amor

      que sempre lhe fora negado

      morrendo sem saber e sofrer

      na neve enregelado

 

      os anjos entenderam

      jesus concordou

      maria sorriu

      melhor seria fazê-lo ascender

      mirito faria o céu feliz

      haveria festa e alegria 

      uma felicidade imensa

      bondade e inocência

      do homem que sempre fora petiz

 

      ave-maria

      ave-maria

 

 

      miro pobre louco

      meu bom amigo

 

 

casmirito morreu no inverno

mirito subiu ao céu entre anjos e arcanjos

miro abandonou o inferno

 

 

***

 

 

CANSADO DE TANTA MORTE

 

      a curva da estrada

 

      apesar do quebranto

      algo me impele a estancar

 

      há sombras vivas 

      que repousam no asfalto

      árvores retorcidas 

      que já deram o seu fruto

      vinhedos esquecidos

 

      o sol brilha através dos ramos dos pinheiros bravos

      um lavrador come a merenda à sombra de uma fraga

      a mulher prepara estacas

      o semeador descansa e bebe

      o vinho com a frescura da água da mina

 

      ao seu lado

      pão de centeio

      queijo da serra 

      um naco de presunto

 

      sorri

      o seu sorriso arrasta-me pela memória dos tempos

      o seu sorriso é rosa-do-mundo

      vejo-me nos calções azuis cor de céu

      e na alva branca na missa de domingo 

 

      há missa 

      os sinos tocam

      casimiro casmiro casmirito mirito miro

      o meu amigo-louco

      da infância perdida

      miro

      o louco

      de sorriso infinito

      aberto

      livre

      ingénuo

      contagiante

      que ia à igreja

      só para me ouvir

      e ver ler

 

      sinto saudades

      não sei se da vida 

      se da morte

      se do mal 

      se do bem

      sinto saudades

      e sentir saudades

      é ter feridas

      sangrantes

      mas sempre é melhor

      ter saudades

      que não ter nada

 

      sento-me no muro em pedra circular

      vejo um vulto no chão

      - eu que desde criança vejo coisas

        coisas que não devia ver -

 

      foi aqui que miro veio morrer

 

      estou cansado de tanta morte

 

 

***

 

 

 

6/2010

 

 

 

 ***

 

 

CAIS DO SODRÉ

 






      tarde fria de inverno

      ramon termina o trabalho

      na garagem conde barão

 

      como há algum tempo

      encontramo-nos vestidos a rigor

     

      a norton 500

      uma preciosidade

      não permite desalinho

      nem desdém

 

      julgo que por essa altura

      teria dezassete anos

      com mestres de envergadura

 

      cais do sodré

      filadélfia e texas

      copenhaga e jamaica 

      mais tarde o atlântico

      famigerados bares

      não havia marinheiro que jejuasse

      não havia náufrago em terra

      que após viagens de longo curso

      sobre mares de prata lustrada

      não tenha sonhado com noites loucas 

      de orgasmos suados  

      de sabor a sal e

      com um quarto de pensão rasca

      num sobe-e-desce

      no corre-corre de uma nota

      trocada por minutos de prazer

 

 

      maiores de 21

      lê-se à entrada

      eu entro sempre 

      sou amigo de gerentes 

      empregados 

      porteiros

      dos clientes 

      bartolini 

      russo e

      outros de estranhos apelidos 

      principalmente do ramon

      emblemático

      com idade para ser meu pai

      porte de cedro do líbano

      parecença de artista de animatógrafo

      dos anos sessenta

      - paz à sua alma -

 

      para as prostitutas eu era o miúdo

      para os amigos e proxenetas também

      os porteiros olhavam para o lado

      e diziam umas vezes sorrindo outras entediados

      entra 

      a tua já anda por aí com um cámone

      ou

      tens princesa nova para cantar

      chegou da província

      é virgem dos ouvidos

      sarcasmo duma vida em pé

      a ver entrar e sair

      subir e descer

      corpos anónimos

 

      porteiros tapetes-de-putas

      homens sem rosto

      sem história própria

      por tanto viverem as dos outros

      pernas habituadas ao cansaço e à dor

      à chuva   ao frio e ao calor

 

 

      do cais do sodré 

      já não se partia para a índia

      de caravela

      construída na ribeira das naus

 

      do cais do sodré

      saíam e saem cacilheiros

      para cacilhas

      autocarros para toda a cidade

      eléctricos amarelos

      comboios para oeiras e cascais

      agora até o metropolitano

      que um dia vai inundar

      - palavra de quem sabe -

 

      no cais do sodré entrava-se

      com uma pita

      num quarto a cheirar a mofo

      e saía-se mais leve

      com sono e sem guita

 

 

      havia gente que corria

      que se atropelava

      para não perder o barco

      não perder o comboio

      gente exausta

      sem identidade

      autómatos do progresso

      que se empurravam

      por um lugar sentado

      no eléctrico

      que subia a rua do alecrim

      para o camões

 

      bastava um tanso começar a correr

      que tudo o seguia

      rebanho de bacocos 

      corriam para não perder a hora

      uns atrás dos outros na esteira do guia

      lanterna-vermelha atrás

      a manquejar o coxinho

      já sem ver o condutor

      mas corria saltinho atrás de pulinho

 

      por vezes um de nós tirado à sorte

      fazia o papel de batedor para diversão do ócio

      do descanso da praça 

      correndo sem parar para a estação

 

      num dia fim de tarde

      um pipi-de-alcântara estatelou-se

      a fronha ensanguentada

      rimos

      enquanto se preocupava com os rasgões 

      das calças e dos cotovelos da jaqueta 

      comprada na rua da palma

      ou palmada no estoril

      a fronha que se quilhasse

      tinha compostura

      a vestidura não

 

 

      na rua do arsenal

      bacalhau às postas

      grosso  miúdo  médio

      inteiro

      o cheiro a bacalhau seco

      caras de bacalhau

      cheiro forte

      intenso

      perfumado de séculos

 

      vendedores de rua

      varinas

      homens descalços 

      com caixotes

      às costas

      vendedeiras

      vendedores de bugiarias

      vigaristas

      um verdadeiro reboliço

      para as mãos sensíveis dos carteiristas

 

      bancas de jornais 

      revistas

      o material de guerra escondido

      proibido pelo estado novo

      um jornal desportivo

      de operários e estivadores

 

 

      o engraxa desaparecera

      começou a mostrar o dinheiro que rendeu

      o assalto ao banco da avenida de roma

      só engraxava quem queria

      um bufo-carteirista deu à língua

      o engraxa foi dentro

      nunca mais o vi 

      irmãos de profissão

      não mais confiei em ninguém

 

 

      nos bares dançava-se

      bebia-se cerveja

      e amava-se

 

      há séculos que marinheiros sedentos

      navegantes de mares cruzados

      longas viagens ao sabor do vento

      vazavam os desejos 

      bebiam os sonhos desfeitos

 

      havia todo o tipo de chulos

      apenas uma meia-dúzia trabalhava

      os outros nada faziam

      tinham as chavalas a render

      a partir da tarde encostavam-se 

      cigarro no canto da boca

      às paredes do largo

      ou vagueavam de bar em bar

      como marinheiros

      impelidos por bons ventos

      no mar 

 

      espreita-me aquela a estibordo

      olha alentejano a bombordo

      é capital seguro prá reforma

      vê-me a ana marada

      o xico da mouraria levou-a ao tira-picos

      está de cabeleira armada

      hoje à reforço na mesada

 

      a esganiçada vem de proa alevantada

      ontem não fez nem um é pra compensar

      ou faz ou o caga-milhões cega-a de porrada

      isto está mau não há bronze

      o pessoal bota a nota debaixo do sapato

      e toca uma gaitada

      sai barato

 

      ontem à noite houve sova de pau no texas

      os fuzos com os feijões-verdes 

      que estão para embarcar para a guiné

      esfrangalharam o negócio todo 

      e o bar ao homem

      eu também estou a berrar

      a marizé pirou-se com um olho negro

      adianta-me uma vintena

      descansa que é para pagar

      não te vou dar nenhuma banhada 

 

 

      elas davam prazer aos marujos

      alguns de água doce 

      os chulos protegiam-nas

      e davam-lhes prazer

      tudo tem um preço diziam

      ninguém se vende 

      não há nada para vender

      só prestação de serviços

      o casamento também é um contrato

      e quase nunca é a valer

 

 

      prostitutas de todas as idades

      vindas de toda a parte

      novas   velhas   de meia-idade

      umas limpas outras esquentadas

      nada que uma injecção não curasse

      prostitutas obrigadas

      prostitutas necessitadas

      prostitutas de verdade escondida

      prostitutas cansadas

      prostitutas vadias

      calaceiras

      solteiras   viúvas e casadas

      - naquele tempo não havia divorciadas -

      mas confidentes da adversidade alheia

      ouvintes atentas do pagador

      que tantas vezes

      ia apenas em busca

      de um punhado de amor

      ou para desafogar mágoas

      de casa

      do trabalho

      do filho estropiado

      por uma mina na picada

 

      prostitutas 

      prostitutas sim

      mas não mercenárias

      prostitutas como já não há

 

 

      cais do sodré de tantas quimeras

      cais do sodré de alegrias e misérias

 

 

      num dos bares

      corpo novo    lavado

      chamavam-lhe cleópatra

 

      alta

      mais alta do que eu

      tão alta como o ramon

      esguia

      quadris de sonho

      rosto egípcio

      olhos rasgados 

     

      cabelos negros 

      modelados em ondas

      perfeitas e sensuais

      roçando a cintura

      e os seios estáticos

      a clamar ao anseio

      a perpetuar o desejo

      beleza incomparável

 

      chegara há dias

      não ia assim com qualquer um 

      não era eleita

      ela elegia

      às vezes não fazia nenhum

 

      no cais do sodré nunca tal se vira

 

      passava distante pelas mesas

      alguns clientes abordavam-na

      olhava-os de baixo a alto

      tirava-lhes a pinta

      complexava-os

      uma ou duas palavras

      noutras abordagens 

      seguia indiferente

      magnificente e desejada

 

 

      na mesa cheia de cervejas

      de brejeiros e madraços

      nasce o desafio

      miúdo 

      cervejas por um mês

      faz-te à garina

      só vale se for uma borla

      riram-se

      insistiram na festa

      nunca cheiraste nada assim

      já comeste pior e a pagar

     

 

      olhei em redor

      mais uma cerveja

      depois vou

      juro

      se levar uma latada

      não serei o último

      nem o primeiro

 

      riram-se adivinhando festival

      aguardando pela caldeirada

      eu sorri tímido às cervejas

 

      olho-a

      ela ignora-me

      volto a olhar

 

      ou sim ou sopas      dizem

      como é ó chouriço vais ou não

      é só gargalo

      levanto-me

 

      espera

      deixa a narta na mesa

      ó esperto

      ou queres mamar à conta

      dos otários

 

      só tenho dez paus      respondo

      deixa-os

      poiso-os contrariado na mesa

      os olhos ora no chão ora na cadeira

      e se me voltasse a sentar

      não

 

      ela está ao balcão

      intimidatória

      bela

      sinto um aperto no estômago

      um sobressalto de alma

      um tiro de obus no coração

      deve ter mais dez anos do que eu

      que mulher

 

      debruça-se na direcção do barman

      por cima do balcão

      a roupa cola-se ao corpo

      meu deus

      que formas que lastro

      não conheço o chulo

      ainda me dá cabo do canastro

 

      aproximo-me

      espero que saia do balcão

      abordo-a a meio da sala obscurecida

      enevoada pelo fumo

      boa tarde      digo

      tarde não      noite      diz

      isso              a medo respondo

      que mal fiz eu a deus penso

      a suar do peito

 

      olha-me demoradamente

      como quem aprecia um objecto

      baixo os olhos

 

      vem-te sentar miúdo

      respiro fundo de alívio

      ela percebe

 

      não bebemos nada

      olho-a submisso

      bebemos ou não

      bom   aqueles gajos ficaram-me com o dinheiro

      sorriu e o seu sorriso não foi o de uma meretriz

      vejo-a fazer um sinal ao jóia

      o velho empregado

 

      de imediato

      duas imperiais

 

      falamos

      ouço-a e a voz é lenta e pausada

      como se lesse pauta de sinfonia

      dá tranquilidade e paz

      ajeita o vestido tapando os joelhos

      assume o diálogo

      faz-me perguntas e fala dela

      diz que tenho um sorriso triste

      que não sei rir

      lê-me a alma e entende a minha agitação

      tens namorada

      digo que não

      riu numa gargalhada contida

      não devias andar por aqui

      neste antro só há vício

      não vais aprender nada

      estás a tempo miúdo

      tens dormido com muitas

      encolho os ombros com timidez

      ela sorri benevolente

 

      ouve

      sabe mais de amor o homem de mulher só

      que homens de muitas mulheres

      ignorantes de afectos do prazer e da paixão

     

      ouço-a

      esqueço-me dos companheiros

      na mesa do fundo

      só eu existo e ela

 

      uma

      talvez duas horas

      passadas num ápice

 

      pergunta-me a frio

      vamos

      não entendo

      ou finjo não entender

      repete

      vamos miúdo

      gaguejo

      não tenho dinheiro

      não me ofendas vem

      não tenho chulo

      não tenho ninguém

      a quem prestar contas

 

      vou

      corpo direito como fuso

      sem olhar os apostadores atónitos

      coração a bater alvoraçado

 

 

      a pensão é perto

      vamos a pé

      as escadas são negras e sujas

      sigo-a

      dá-me a mão e estremeço

      vai à frente e paga o quarto adiantado

      a matrona indica-nos o ninho

      apontando-o com um molhe de couves

      apertado na mão

      estava a fazer sopa

      tira-me as medidas

 

      o quarto é velho

      não parece ter sido convenientemente limpo

      há um bidé 

      um lavatório ao fundo da cama

      duas toalhas minúsculas e gastas

      a cama está coberta por uma colcha coçada

      desenhada com flores

      que foram outrora púrpura e azul-violáceo

      por baixo lençóis amarelados

      que já devem ter sido usados milhares de vezes

      uma janela pequena dá alguma claridade

      iluminando as sombras da penumbra

      uma mesinha de cabeceira

      um quadro da nossa senhora da conceição

      na parede onde está uma mesinha

      com pernas desengonçadas

      o tabique tem um rombo superficial

      de meio metro

      o chão de madeira não está aplainado

      ou então está empenado     range aos passos 

      tapado parcialmente por dois tapetes

      que certamente passaram pela guerra do ultramar

      tal o seu estado

 

      ouve-se um rumor no quarto ao lado

      um cliente quer o terceiro prato

      ela 

      não sei quem 

      grita

      paga anormal 

      ou há papel ou não há palhaço

      vai afagá-lo na tua mãe

 

 

      vejo-a tirar os sapatos 

      descobrindo metade das pernas

      arredondadas e cor de pinho-mel

 

      sento-me na cama vestido

      ela aproxima-se

      envolve-me com os seus longos braços 

      acaricia-me a face e os cabelos

      beija-me no pescoço junto ao peito

      não estou à vontade

      o odor libertado pelo quarto mofento 

      mistura-se com os nossos perfumes

 

      sinto à flor da pele 

      um vento suave e doce

      um calafrio como se a morte passasse ao lado

      incógnita e indiferente

 

      vou alcançando lentamente

      segurança 

      alguma serenidade

 

      no amparo das suas carícias

      enlaço-a e beijo-a na boca rosada

      as minhas mãos percorrem com suavidade o seu corpo escultural adivinhando uma nudez esplêndida

      nada me lembra ou faz pensar nos dias de amor que por ela desfilaram

 

      somos apenas nós 

      dois que de momento a momento

      se transformam num só

 

      as mãos já me não tremem

      os dedos deslizam no veludo dócil da pele

      paulatinamente como quem embala uma criança

      dispo-a descobrindo-se um corpo alucinante

      os meus lábios percorrem o seu ventre

      os seios e os ombros de marfim cinzelado

      as minhas mãos sobem dos joelhos

      com a leveza de um movimento circular

      e detêm-se na flor do seu sexo

      talhado por escultor heleno

 

      os corpos unem-se num místico amplexo

      há um leve gemido que se contorce de prazer

      um grito abafado pela almofada bordada

      de modo imperfeito ou grosseiro

 

      a matrona bate à porta

      avisa

      vê se te despachas o tempo acabou

 

      ela levanta-se

      porta entreaberta

      estende-lhe uma vintena

      talvez duas ou três

      diz

      a noite é nossa

      fecha-a definitivamente

 

      corre para o leito

      o quarto transforma-se

      não tem o odor do sexo

      do suor das tardes 

      e noites mal-amadas

 

      é movimento

      é fulgor 

      é êxtase

      ausência de pensamento

 

      no ar

      pairam orgasmos sucessivos

      que bailam ao luar da janela

      há gritos

      bramidos

      ruídos surdos

      um só corpo a amar

      um só corpo a bailar

      há odores a flores silvestres

      margaridas

      camomilas 

      narcisos

      o quarto decorado

      a rosmaninho 

      salva e alecrim

      há arrebatamento

      há o fim do pensamento

      há um deus que nos incita

      a amar

      ao amor

      há uma ânsia de continuar

      de amar sem findar

      há a eternidade da inocência

      eternidade que não quer terminar

      um amor com o vento norte a pairar

      um amor forte e violento como a morte

 

      olhamo-nos 

      suados de aroma celestial

      mente vazia

      de quem nasceu para a vida

      em horas de místico prazer

 

      despedimo-nos

      uma lágrima escoa de seus olhos negros

      nasceste para isto miúdo

      não se aprende

      não se ensina

      nasce e morre

      com a gente

      sussurra

      suave e doce

      amaviosa

      enquanto com os dedos

      me penteia os cabelos em desalinho

 

      miúdo

      diz

 

      hoje perdi a virgindade

      sou tua

      consegues perceber o que digo

      respondo que sim

 

      sustenho a respiração

      em mim o coração num aperto

      fecho os olhos

      vendo o que não voltarei a ver

      amando ainda por segundos

      o que jamais voltarei a amar

      quebro o silêncio a tristeza e a saudade

       e sentindo no peito o dia a clarear digo

       com a timidez de uma criança 

 

hoje sei o que é amar

contigo ou sem ti

sou e serei sempre teu

 

 

nunca mais a vi

nunca quis receber o prémio da aposta

 

***

 

6/2010

 

 

José Maria Alves

https://homeoesp.blogspot.com/

https://jma-antipoesia.blogspot.pt/



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