ANTIPOESIA

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sábado, 9 de janeiro de 2021

TAO TE CHING II

 

 

A Lao Tse

 

 

 

***

 

 

a virtude superior

            não é virtude

pelo que não possui

            a virtude

 

a virtude inferior

            não perde a virtude

pelo que não possui

            a virtude

 

               a virtude superior

                   é não-acção

                                          não utiliza

                                             a acção

 

 

        a virtude inferior

                     é acção

        faz uso

                     da acção

 

a bondade superior

                           é acção

não utiliza

              a acção

 

a justiça superior

                        é acção

que faz uso

da acção

 

 

      à perda do caminho

         segue-se a virtude

 

      à perda da virtude

         segue-se a bondade

 

      à perda da bondade

         segue-se a justiça

 

      à perda da justiça

         segue-se a delicadeza

 

 

a delicadeza é o empobrecimento

da fidelidade e da confiança

e é o princípio da confusão

 

 

aquele de conhecimentos avançados

como a flor do caminho

é o princípio da estupidez

 

 

o grande homem

coloca-se

no consistente

e não se coloca

no rarefeito

habita

no fruto

e não habita

na flor

afastando esta

e persistindo naquele

 

 

os sábios adquiriram

o um

na antiguidade

 

o céu adquiriu

o um

e tornou-se transparente

 

a terra adquiriu

o um

e tornou-se tranquila

 

o espírito adquiriu

o um

e tornou-se desperto

 

os vales adquiriram

o um

e tornaram-se opulentos

 

os dez mil seres adquiriram

o um

e tornaram-se vivos

 

os príncipes e os reis adquiriram

o um

e tornaram-se o eixo do mundo

 

 

esses alcançaram a supremacia

 

 

o céu

não se tornando transparente

temerá fender-se

 

a terra

não se tornando tranquila

temerá estremecer

 

o espírito

não se tornando desperto

temerá exaurir-se

 

os vales

não se tornando opulentos

temerão secar

 

os dez mil seres

não se tornando vivos

temerão extinguir-se

 

os príncipes e os reis

não se tornando nobres

temerão a derrota

 

assim

 

o nobre utiliza

a humildade

como princípio

 

e

 

o alto

utiliza o baixo

como base

 

sendo assim

 

os príncipes e os reis

      denominam-se a si mesmos de órfãos

                   carentes e indignos

 

isto seria utilizar

a humildade como princípio

ou não seria

 

por isso

 

alcançar o valor

é aproximar-se

do não-elogio

 

não desejando

o vulgar como o jade

sendo simples como a pedra

 

 

***

 

 

          o retorno

          é o movimento

          do caminho

 

          a suavidade

          é a acção

          do caminho

 

 

os seres sob o céu

nascem

da existência

 

e a existência

nasce

da não-existência

 

 

***

 

 

o homem superior

ao ouvir falar  sobre o caminho

esforça-se para que o possa realizar

 

o homem médio

ao ouvir falar sobre o caminho

às vezes resguarda-o outras perde-o

 

o homem inferior

ao ouvir falar sobre o caminho

trata-o com gargalhadas

 

se não fosse tratado

com risos e gargalhadas

não seria  o suficiente

para ser o caminho

 

por isso as seguintes palavras lembram que

 

a iluminação do caminho

                                é como se fosse a obscuridade

 

o avanço do caminho

                            é como se fosse o retrocesso

 

as planícies do caminho

                               são como se fossem iguais

 

a virtude superior

                       é como se fosse o que é comum

 

a grande brancura

                       é como se fosse o sujo

 

a virtude ampla

                    é como se fosse insuficiente

 

construir a virtude

                        é como se fosse roubar

 

a solidez verdadeira

                          é como se fosse o instável

 

o grande quadrado

não tem ângulos

o grande recipiente

conclui-se tarde

o grande som

carece de sonido

a grande imagem

não tem forma

 

o caminho é invisível

e não tem nome

 

apenas o caminho

é bom em

auxiliar e terminar

 

 

***

 

 

o caminho

gera o um

o um

gera o dois

o dois

gera o três

o três

gera os dez mil seres

 

os dez mil seres cobrem-se com o obscuro

abraçam o que é claro

harmonizam-se através do sopro do absoluto

 

o que os homens

detestam

são os órfãos

os carentes

os indignos

 

mas é assim que reis e príncipes

se denominam

 

por isso

 

as coisas

ao serem diminuídas irão aumentar

aumentadas irão diminuir

 

o que os homens ensinaram

eu também ensino

                          com o mesmo sentido

 

os troncos rígidos

não merecerão

                     a sua morte

 

irei utilizar isto

como pai de todo o ensinamento

 

***

 

 

sob o céu

o mais suave

cavalga sobre o mais duro

 

a não-existência

pode penetrar

no sem-espaço

 

por isso conheço

o benefício

               da não-acção

 

o ensinamento                          da não-palavra

o benefício                                da não-acção

sob o céu são poucos                 os que o alcançam

 

 

***

 

 

     a fama          ou o corpo

     o que é que mais se ama

 

          o corpo         ou a riqueza

          o que é que vale mais

 

               ganhar          ou perder

               o que é que mais enferma

 

 

o excesso de desejos

causará uma grande apoquentação

e

o excesso de bens

causará uma morte imersa na riqueza

 

      quem sabe contentar-se

      não se humilha

 

      quem sabe conter-se

      não se irá exaurir

 

poderá viver longamente

 

 

***

 

 

a conclusão suprema

parece incompleta

a sua utilização não danifica

 

a abundância suprema

parece vazia

a sua utilização não se esgota

 

a rectidão suprema

                           parece tortuosa

 

a habilidade suprema

                              parece desajeitada

 

a eloquência suprema

                               parece titubear

 

o movimento vence o frio

                                    e a quietude vence o calor

 

a transparência e a quietude

actuam governando sob o céu

 

 

***

 

 

existindo o caminho                     sob o céu

conduzem-se os cavalos               para estercar

 

não existindo o caminho              sob o céu

armam-se os cavalos                    para viver nas fronteiras

 

não há maior delito

do que admirar os desejos

 

não há maior calamidade

do que não saber contentar-se

 

não há maior erro

do que desejar possuir

 

 

com a suficiência

de quem sabe o que é suficiente

terá sempre o suficiente

 

 

***

 

 

sem sair a porta

pode conhecer-se

o mundo

 

sem ver através da janela

pode conhecer-se

o caminho do céu

 

quanto mais longe

saímos

tanto menos

conhecemos

 

 

   o homem sagrado

      conhece sem caminhar

            reconhece sem ver

               concretiza sem agir

 

 

***

 

 

a realização através

dos estudos

é ampliar dia após dia

 

a realização através

do caminho

é simplificar dia após dia

 

simplificando e simplificando mais

      até alcançar a não-acção

 

na não-acção

não há o que não

possa ser feito

 

 

apoderar-se do mundo

é permanecer

através do não-apego

 

ao surgir a actividade

já não é mais suficiente

para que se apodere do mundo

 

 

***

 

 

              o homem sagrado

              não tem coração

                                     tem o povo

                                     como o seu coração

 

com os bons

                  faço o bem

 

com os que não são bons

                                    também faço o bem

 

adquirindo o bem

com os sinceros

sou sincero

 

com os que não são sinceros

também sou sincero

adquirindo a sinceridade

 

o homem sagrado sob o céu

age cautelosamente

fundindo os corações do mundo

 

         fundindo o povo

             com olhos

         e ouvidos atentos

 

 

o homem sagrado

trata-os como crianças

 

 

***

 

 

     nascer na vida

     entrar na morte

 

     dos que ao nascimento pertencem

     entre dez há três

 

         dos que à morte pertencem

         entre dez há três

 

         dos homens vivos

         os que se movem

         para a terra da morte

           entre dez há três

 

e qual é a causa

 

                      as suas vidas

                      são vividas

                      em excesso

 

 

ouvi dizer

que o bom cultivador da vida

viaja pela terra

e não se confronta

com rinocerontes

nem com tigres

e atravessa um exército

sem armadura nem armas

 

os rinocerontes

não têm onde enfiar o chifre

os tigres

não têm onde cravar as garras

e as armas

não têm onde alojar as lâminas

 

e qual é a causa

 

nele não existe

lugar para a morte

 

 

***

 

 

o caminho gera

a virtude e cria

 

a matéria forma

a conclusão completa

 

 

os dez mil seres

veneram o caminho

e prezam a virtude

 

o caminho é venerável

a virtude é estimável

 

por tal

o caminho

gera a virtude e cria

 

fazem crescer

fazem nutrir

fazem completar

fazem concluir

fazem o sustento

e fazem a cobertura

 

 

geram

porém

não se apossam

 

agem

porém

não retêm

 

cultivam

porém

não controlam

 

 

          a isto chamamos

          virtude misteriosa

 

 

***

 

 

sob o céu

há um princípio

                     que age como

                     mãe do mundo

 

existindo a mãe

       pode conhecer-se o filho

 

já que se conhece o filho

       volte-se a preservar a mãe

 

assim

 

o fim do corpo

não conduzirá

à morte

 

fechando a boca

          trancando a porta

                    até ao fim do corpo sem desgaste

 

abrindo a boca

          favorecendo a actividade

                    até ao fim do corpo sem salvação

 

ver o pequeno

diz-se iluminação

 

usar a suavidade

diz-se força

 

 

use de volta a sua luz

para que se volte a iluminar

       assim não causará dano ao corpo

 

 

a isto chamamos herdar o constante

 

 

***

 

 

que me torne naturalmente

firme e possuidor do saber

percorrendo o grande caminho

temendo apenas a dissipação

 

o grande caminho

é bastante tranquilo

os homens preferem os trilhos e atalhos

 

 

governo

com excesso de degraus

 

campo

com excesso de ervas daninhas

 

armazém

com excesso de vazios

 

vestir

bordados coloridos

 

carregar

uma espada afiada

 

saciar-se

comendo e bebendo

 

possuir

moedas e bens em excesso

 

a isto chamamos roubo

e auto-encantamento

 

 

o roubo e o auto-encantamento

negam definitivamente o caminho

 

 

***

 

 

o que é bem plantado

                              não é arrancado

 

o que é bem abraçado

                              não se separa

 

por tal motivo

 

filhos e netos

                   não cessam de venerar

 

restaure o seu corpo

e a sua virtude

será autêntica

 

restaure a sua casa

e a sua virtude

será abundante

 

restaure a sua província

e a sua virtude

será crescente

 

restaure o seu reino

e a sua virtude

será farta

 

restaure o seu mundo

e a sua virtude

será vasta

 

assim

 

        através do corpo

        percebe-se o corpo

 

        através da casa

        percebe-se a casa

 

        através da província

        percebe-se a província

 

        através do reino

        percebe-se o reino

 

        através do mundo

        percebe-se o mundo

 

 

como posso conhecer a natureza do mundo

 

é através disto

 

 

***

 

 

quem possui

a virtude em abundância

é como um recém-nascido

 

os insectos

               não o ferram

 

as aves de rapina

                        e os animais bravios

                                                    não o capturam

 

tem ossos leves

                      cartilagens macias

                                               mas firmes

 

desconhece a união

                           de macho e fêmea

mas o seu órgão desperta

                           pela plenitude da essência

 

grita até ao fim do dia

                               mas não fica rouco

                                             pela plenitude da harmonia

 

      conhecer a harmonia

      chama-se constância

 

      conhecer a constância

      chama-se iluminar

 

      enriquecer a vida

      chama-se esclarecer

 

o coração

que ordena o sopro

chama-se força

 

as coisas no seu auge

            tornam-se velhas

                           a isso chamamos negar o caminho

 

 

negando o caminho

rapidamente falecem

 

 

***

 

 

o que pertence à compreensão

                                           não é a palavra

o que pertence à palavra

                                  não é a compreensão

 

fechando a boca

aferrolhando a porta

cegando o corte

desenlaçando o nó

harmonizando-se à luz

igualando-se à poeira

a isto chamamos o mistério comum

 

união com o um

 

com o qual

 

não se pode encontrar

                               avizinhamento

 

não se pode encontrar

                               arredamento

 

não se pode encontrar

                               bendição

 

não se pode encontrar

                               malignidade

 

não se pode encontrar

                               valorização

 

não se pode

                 encontrar desvalorização

 

por isso

 

age como nobre sob o céu

 

 

***

 

 

através da rectidão

organiza-se o reino

 

através da singularidade

dirige-se a guerra

 

através da não-actividade

adquire-se o mundo

 

 

como posso conhecer a natureza do mundo

 

é através disto

 

 

muitas são as restrições

e omissões no mundo

que tornam o povo

completamente pobre

 

muitos instrumentos afiados

                                        entre o povo

                                        fazem crescer a confusão

                                        no reino e na família

 

muito conhecimento

                            engenhoso entre o povo

                            faz crescer o surgimento

                            de objectos estranhos

 

          leis e coisas

          crescendo visivelmente

          fazem surgir muitos

          ladrões e salteadores

por isso

 

o homem sagrado dizia

eu não agindo

o povo transforma-se

 

eu

sem actividade

o povo enriquece-se

 

eu estando tranquilo

o povo

rectifica-se

 

eu

sem desejos

o povo simplifica-se

 

 

***

 

 

     onde governa a tolerância

     o povo tem tranquilidade

 

          onde governa a discriminação

          o povo tem insatisfação

 

é na desgraça

que se encontra

a felicidade

e é na felicidade

que se esconde

a desgraça

 

quem é capaz de conhecer estes extremos

 

 

na ausência de governo        o governo passa a agir        como um estranho

a bondade passa a agir como maldade

 

a ilusão do homem         tem o seu dia

longamente consolidado

 

seja quadrado

sem corte

 

seja honesto

sem humilhar

 

seja recto

sem abusar

 

seja luminoso

sem ofuscar

 

 

***

 

 

para reger

      o homem

            e servir o céu

                         nada como

                       ser o modelo

 

somente sendo o modelo

             cedo se pode dominar

 

dominar cedo significa acrescentar

           acúmulo à virtude

 

aumentando o acúmulo de virtude

não há o que não se possa vencer

 

não havendo o que não se possa vencer

não se conhece o seu extremo

 

podendo conhecer os seus extremos

                  pode possuir-se o reino

 

possuindo

             a mãe

                do reino

                   pode ser-se

                      constante

 

isto é uma raiz profunda e um pedúnculo sólido

 

é o caminho da vida constante e da visão duradoura

 

 

***

 

 

governar um grande reino

é como cozinhar

um pequeno peixe

 

 

actuando sob o céu

através do caminho

os seus demónios

não são despertados

 

não que os seus demónios

não sejam despertados

 

mas o seu despertar

não fere o homem

 

não que seu despertar

não fira o homem

 

o homem sagrado

também não fere o homem

 

sendo que os dois não se ferem

assim as suas virtudes unem-se e retornam

 

 

***

 

 

o grande reino

      é aquele corrente abaixo

            é um campo sob o céu

 

 

num campo sob o céu

a fêmea vence sempre

o macho através da quietude

 

 

o grande reino

estando abaixo

do pequeno reino

conquista

o pequeno reino

 

o pequeno reino

   estando abaixo

      do grande reino

         anexa

             o grande reino

assim

                ou por estar abaixo

                   para conquistar

                      ou por estar abaixo

                          para absorver

      o grande reino

      apenas deseja unir

      e cultivar os homens

      enquanto

      o pequeno reino

      apenas deseja integrar

      e servir os homens

 

cada um destes dois

encontra o local para o seu desejo

 

portanto

o grande deve estar abaixo

 

 

***

 

 

o caminho

é o segredo

dos dez mil seres

 

o tesouro

do homem benevolente

 

 

    o caminho

    é o que o homem

    não-benevolente

    não guarda

 

 

as palavras se belas

                            podem ser negociadas

 

atitudes reverentes

                            podem elevar um homem

 

mesmo com a não-benevolência do homem

como se poderia deixá-lo ao abandono

 

por isso

ergue-se o filho do céu

e ordenam-se os três duques

 

mesmo possuindo o jade da oferenda

antes de quatro cavalos

nada se compara a sentar e entrar no caminho

 

 

por que motivo antigamente se valorizava o caminho

 

não diziam que quem busca pode adquirir

quem possui culpa pode ser absolvido

 

por via disso

é valioso sob o céu

 

 

***

 

 

acção

através da

não-acção

 

actividade

através da

não-actividade

 

sabor

através do

não-sabor

 

grande

como

pequeno

 

muito

como

pouco

 

retribuir a injustiça

através da virtude

projectar o difícil

a partir do fácil

realizar o grande

a partir do pequeno

 

sob o céu

             a actividade difícil

                                      realiza-se a partir da fácil

 

a grande actividade

                            realiza-se a partir da pequena

 

promessas

levianas

carecem de confiança

 

excesso

de facilidades

traz excesso de dificuldades

 

         assim sendo

         o homem sagrado

         assemelha-se ao difícil

         e por isso até o fim

         não tem dificuldades

 

 

***

 

 

o que tem paz

é fácil de manter

 

o que é anterior

ao despertar

é fácil de planear

 

o que é frágil

é fácil de quebrar

 

o que é pequeno

é fácil de dissolver

 

 

realiza-se

      a partir da existência

      organiza-se

      a partir de antes da desordem

 

 

   uma árvore de grande abraço

   gera-se de uma muda fina

  

   uma torre de nove andares

   levanta-se de um acúmulo de terra

 

   uma viagem de mil léguas

   inicia-se debaixo dos pés

 

 

quem age fracassa

quem se apega perde

 

o homem sagrado

não age

por via disso

não fracassa

não se apega

por isso

não perde

 

 

os homens

na realização das actividades

sempre fracassam

em suas quase-conclusões

 

cautela

tanto no fim

como no princípio

conduz à actividade

sem fracasso

 

o homem sagrado

deseja através do não-desejo

 

não valoriza as coisas

de difícil aquisição

 

aprende

através do não-aprender

 

possui

o que ultrapassa todos os homens

 

 

      para auxiliar a autenticidade

            dos dez mil seres

       e não encorajar a acção

 

 

***

 

 

na antiguidade

os bons executantes

do caminho

não o utilizavam

para esclarecer o povo

 

usavam-no

para o alegrar

 

a dificuldade

                 de governar o povo

                                           é devida

                                           aos seus conhecimentos

 

utilizando o intelecto

para governar o reino

têm-se furtos no reino

 

não utilizando o intelecto

para governar o reino

tem-se virtude no reino

 

aquele que conhece estes dois

também se orienta por estes modelos

 

ao constante conhecimento

da orientação por estes modelos

chamamos

misteriosa virtude

 

a misteriosa virtude

é profunda e longa

ao inverso das coisas

 

     naturalmente

     depois disso

     alcança-se a grande fluência

 

 

***

 

 

o que pode tornar os rios e mares

reis dos cem vales

é saber situar-se em baixo

 

          o homem sagrado

          que aspira estar

          acima dos homens

          coloca as suas palavras

          abaixo das deles

 

aspirando estar à frente dos homens

coloca o seu corpo atrás dos deles

 

 

situa-se em cima

                        mas o seu povo

                                              não sente o peso

 

 

situa-se à frente

                       porém o povo

                                            não é lesado

 

 

o mundo alegra-se

em exaltá-lo sem desgosto

 

 

como ele não disputa

o mundo

não pode disputar com ele

 

 

***

 

 

sob o céu todos

                      se consideram grandes

 

não rio disso

 

o grande

sendo grande

não ri

 

          se risse

          há muito

          que se teria

          tornado

          pequeno

 

 

eu tenho três tesouros

que valorizo e preservo

 

o primeiro

      chama-se afectividade

 

o segundo

      chama-se simplicidade

 

e o terceiro

      chama-se

não encorajar ser o dianteiro sob o céu

 

assim

       através da afectividade

       pode ter-se coragem

                      através da simplicidade

                      pode ter-se amplitude

                      não encorajando

                      ser-se o dianteiro sob o céu

                                  o humilde

                                  pode concluir-se

                                  o instrumento do eterno

 

hoje

      abandonando a afectividade

      e tendo coragem

 

      abandonando a simplicidade

      e tendo amplitude

 

      abandonando o ulterior

      e tornando-se o dianteiro

 

isto é morrer

 

 

através da afectividade

com a manifestação é ordenada a rectidão

com o resguardo é ordenada a duração

 

quando o céu quer salvar

utiliza a afectividade

como protecção

 

 

***

 

 

na antiguidade

os bons praticantes

de cavalheirismo

não eram belicosos

 

        bons em guerrear

                sem ira

 

        bons em vencer os inimigos

                   sem disputa

 

        bons em empregar os homens

               agindo como inferior

 

   a isto chamamos a virtude da não-disputa

   a isto chamamos a força de empregar os homens

   a isto chamamos a supremacia da união com o céu

e a antiguidade

 

 

***

 

 

sobre o uso da arma há um provérbio

 

            não me encorajo a agir como anfitrião

            prefiro agir como hóspede

            não me encorajo em avançar uma polegada

            prefiro recuar um pé

 

 

     a isto chamamos

     mover não movendo

     agarrar não abraçando

     defender não lutando

     enfrentar sem inimizade

 

não há desgraça maior

do que humilhar o inimigo

 

humilhando o inimigo

arriscamo-nos

a perder o nosso tesouro

 

por isso

 

no confronto onde as armas se igualam

vence o que está entristecido

 

 

***

 

 

a minha palavra

é bastante fácil

de compreender

bastante fácil

de praticar

 

mas sob o céu

ninguém a consegue compreender

ninguém a consegue praticar

 

 

as palavras têm uma origem

os actos têm um regente

e somente através da não-compreensão

não se tem a compreensão do ego

 

aqueles que me compreendem são poucos

 

aqueles que me seguem são nobres

 

 

o homem sagrado

cobre-se com andrajos

abraçando jade

 

 

***

 

 

saber do não-saber

             é sublime

 

não saber do saber

              é doença

 

o homem sagrado

   não adoece

      por considerar

          doença a doença

 

não há doença

 

 

***

 

 

quando o povo

não tem medo do temível

o grande temor chega

 

 

não estreite a sua morada

não despreze a sua vida

pois somente não desprezando

pode tornar-se o não-apodrecido

 

 

o homem sagrado

conhece-se a si mesmo

mas não se evidencia

 

ama-se a si mesmo

mas não

se estima

 

 

deste modo nega isto

e admite aquilo

 

 

***

 

 

quem tem a coragem

de ser destemido

enfrentará a morte

 

quem tem a coragem

de ser cauteloso

manifestará a vida

 

 

   esses dois são

                    ora benéficos

   ora maléficos

 

quando o céu repudia

quem compreenderá a causa

 

o caminho do céu

não disputa

mas é bom a vencer

 

 

não fala

mas é bom a responder

 

não é invocado

mas vem por si

 

não fala

mas é bom a planear

 

 

a teia do céu

é grandiosamente grande

liga-se a tudo

e de nada se perde

 

 

***

 

 

o povo constante

não teme a morte

 

como o poderemos intimidar

usando a morte

 

     se considero estranho

     esse constante

     que não teme a morte

 

          será que devo matar

          mesmo reconhecendo a sua coragem

 

     o constante

     possui o encargo

     de matar e mata

 

          o homem

          que tomar o lugar

          no encargo de matar

          será como substituir

          um grande lenhador ao serrar

 

 

               o homem

               que substituir o grande lenhador ao serrar

               muito raramente não magoará a mão

 

 

***

 

 

a fome do homem

deve-se a que o governante

se alimente de impostos em excesso

 

daí

a existência da fome

 

     a difícil governabilidade de cem famílias

     é devida ao seu superior agir intencionalmente

     daí o desgoverno

 

a morte fácil do povo

é devida a que se viva

uma vida de excessos

 

daí que exista a morte fácil

 

 

apenas aqueles

que não utilizam a vida para agir

são bons a valorizar a vida

 

 

***

 

 

     o homem ao nascer

     é macio e brando

 

          ao morrer

          é rígido e duro

 

a erva

a madeira

e os dez mil seres

ao germinarem

são como a suave penugem

do ventre de uma ave

e ao morrer

ficam secos e murchos

 

os rígidos e duros

são os companheiros da morte

 

os tenros e brandos

são os companheiros da vida

 

sendo assim

as armas duras não vencem

as árvores duras são comuns

 

           os rígidos e duros

           moram em baixo

           os tenros e brandos

           situam-se em cima

 

 

***

 

 

o caminho do céu

é como o retesar do arco

 

 

a parte superior baixa

                               a parte inferior sobe

 

a parte que possui sobra

                               é diminuída

 

a parte não-suficiente

                               é completada

 

 

o caminho do céu

diminui a sobra possuída

completa o não-suficiente

 

mas o caminho do homem

não se orienta assim

 

diminui do não-suficiente

para oferecer ao que possui sobra

 

mas quem pode possuir sobras para oferecer ao mundo

 

somente aquele que possui o caminho

 

 

         o homem sagrado

         age

         sem querer para si

         conclui a obra

         mas não se apega

         e não deseja

         mostrar a sua eminência

 

 

***

 

 

sob o céu

nada é mais suave e brando

que a água

 

no entanto

para atacar

o que é rígido e duro

nada se lhe pode adiantar

nada a pode substituir

 

 

a suavidade

vence a força

o brando

vence o duro

 

 

     sob o céu

     não há quem o não saiba

     não há quem não o possa praticar

 

o homem sagrado disse

 

aceitar as impurezas do reino

chama-se reger o cereal e a terra

 

e aceitar as desventuras do reino

chama-se reinar sob o céu

 

as palavras correctas

parecem contrárias

 

 

***

 

 

ao conciliar-se

um grande rancor

ainda haverá uma réstia de rancor

 

 

como se poderá agir bem

 

o homem sagrado

toma o sinal esquerdo

liga-se ao mundo pelo coração

e não critica os outros

 

 

quem tem virtude

orienta-se pelo sinal

quem não tem virtude

orienta-se pelo vestígio

 

     o caminho do céu

     não cria intimidade

     mas acompanha sempre

     o homem bom

 

 

***

 

 

   um pequeno reino

   de poucos habitantes

   mesmo que possua

   um utensílio para

   dezenas de centenas

   não o usa

 

faça o povo valorizar a morte

                                e não viajar para longe

 

possuindo barcos e carruagens

                           mas não tendo onde os usar

 

possuindo armas e armaduras

                           mas não tendo onde as enfileirar

 

 

faça com que o povo retorne

aos nós em corda e ao seu uso

 

 

serão

doces

os seus alimentos

 

belas

as suas

roupas

 

pacíficas

as suas

moradas

 

alegres

seus

costumes

 

 

que os reinos vizinhos

          estejam à vista

 

que o som dos galos e dos cães

                        sejam ouvidos

 

 

faça com que o povo

alcance a velhice

sem ter que ir e vir

 

 

***

 

 

as palavras confiáveis

não são belas

 

as palavras belas

não são confiáveis

 

quem sabe

não é abrangente

 

quem

é abrangente não sabe

 

quem é bom

não discute

 

quem discute

não é bom

 

 

o homem sagrado não acumula

quanto mais faz pelos homens mais tem

quanto mais dá aos homens mais aumenta

 

 

 

o caminho do céu

é favorecer e não prejudicar

 

o caminho do homem sagrado

é fazer e não disputar

 

 

 

***


Versão livre do Tao Te Ching de Lao Tse


***

 


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