ANTIPOESIA

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ANTIPOESIA

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

CANTO V - BOÉMIA



pelas sórdidas regiões humanas jornadeia um homem a quem os argumentos fáceis não assombram      que não crê por querer crer      não é judeu nem cristão muçulmano católico budista ou hindu      abomina seitas e greis prelados e autoridades senhorios ladrões santos adulterinos e estanhados      magistrados políticos chulos e cabrões      advogados marafonas e canastrões      não é rico não é pobre      não roga a deus despreza a lei dos homens e a divina não crê nas verdades fabricadas       não assevera nada      não é nada não quer nada     
pelas imensas províncias da terra hostil quem é este varão que em si tem tanto de melancolia quanto de bravura      pergunto-me

estar      estar sem mais num dia-a-dia selvático
nada querer nem o não-querer
ser-sem-ter
de quem tudo teve e foi

fêmeas      noites de loucura      tardes secretas      amar e mar      temporais desfeitos      guerra e paz      rum gin e veneno      calmarias oceânicas e morte      acaso azar e sorte


o meu nascimento nada trouxe de diferente      é algo que estranhamente não lembro e devia lembrar      todos deviam memorar esse momento      minha mãe diz que não chorei nem a porrete      lamento
não me encomendei a este planeta não me destinei a ser      nenhum bem ou mal ao mundo a mim indiferente quis fazer      a minha morte não abreviará o seu tempo não acanhará o seu luzimento nem o seu tamanho

não há ninguém em toda esta multidão que me elucide      por que vim      para que vim      porque terei de partir sem que a alguém o peça ou requeira

donde vim      quem sou      para onde vou

ouvi rosas túlipas jasmins amores-perfeitos nos jardins
vi as vozes das mulheres que percorreram os meus orgasmos e falsas-paixões e o canto do rum nos bares escondidos na noite      e os corpos      corpos      corpos desnudos que rememoro estupidamente


a vida é um jogo insípido      para além dos prazeres a dor e a  morte      feliz é a criança que morreu ao nascer mais feliz ainda aquela que não chegou a ver a luz do dia

não tenho medo do amanhã      o amanhã não existe      mais logo esta noite ou talvez ao raiar da aurora poderei já não existir      tempo terminado nesta terra      navio fantasma a afundar na ilusão da eternidade     
pedi rum e uma mulher      uma garrafa e seios erectos sufocados pelas mãos ardentes
peço rum e amor 
    

na taberna da minha aldeia pedi a velhos sábios notícias dos que já partiram      tio zé gabriel respondeu      só nos levam a dianteira é tudo o que sei      tio antónio velhaco ouviu e disse      eu sei um pouco mais      morreu fodeu-se e não mais voltará           
bebe      vá bebe e esquece

e o abade e suas lérias      artimanhas cantadas aos pobres de espírito numa ressurreição encenada
e a reencarnação dos espíritas e monges castrados
psicopatas-abúlicos
pobres dos humildes     pobres dos pobres em espírito


não faço projectos      não pesco em lagos secos      não estou certo de poder terminar o que agora escrevo      amanhã talvez possa estar tão longe deste covil tão distante desta cáfila      talvez no nada-dos-desaparecidos na terra-dos-esquecidos
posso mergulhar na noite nas profundezas do oceano subir aos montes descer aos vales escalar as muralhas dos fortes caminhar no horizonte amar uma virgem ou uma meretriz rezar uma oração      em vão 
    
o meu grito é o dos ancestrais enquanto contemplavam o sol e a lua os raios e trovões      desconheço o rumo norte o sul e todas as veredas-mistério      nas horas venenosas clamo pela morte

como é débil o homem      fatal e implacável o seu destino      como é dissimulado e insincero
juramentos      juras falsas      votos que não cumpre indiferente à vergonha e à desonra      frieza da mentira em solo de hipocrisia  
   
eu vivi na insensatez destempero e desacerto
mas tenho por perdão o rum das noites de verão e as quentes paixões das invernias      o calor da carne em chamas

os meus amigos morreram     vivemos numa feira de vacas-loucas      avinhados construímos nas nuvens o teatro-da-vida      não escolho outros nem porto seguro      chega de amigos  
   
colhia todos os frutos maduros que as minhas mãos pudessem alcançar      rum e mulheres     copos de cristal e as mais belas esposas-de-uma-noite      deus não se importava com os meus vícios e virtudes como abraçava os prazeres e com o que fazia do meu corpo      deus tinha mais que fazer se é que fazia alguma coisa
cansara-se de tagarelas e puritanos
rum gin e uísque eram alforria de dúvidas e cuidados de medos e fados indecisão e embaraços     
era o batel estivado a ninfas que momento a momento me arrebatava para a terra-do- esquecimento

bebia rum e gin nos bares enegrecidos pela volúpia      bebia a água do idílico ribeiro da minha pobre aldeia      bebia o vinho puro das nossas vinhas antigas      só deus é deus e ele tudo via e conhecia      só há um deus e ele tudo sabia tudo previa      não é o que está escrito no raio das escrituras      quando me criou não sabia que eu beberia e pelos caminhos da estúrdia com outros boémios vaguearia
a boémia das vielas dos becos das avenidas dos bares do cais do sodré      ah o odor do álcool e das fêmeas      inebriante    
se não bebesse nem amasse esses corpos apetecíveis a ciência de deus seria um fracasso      poderá ele castigar o que assim criou      poderá castigar-me a mim que a ele devo o que sou    extasiante foi o meu prazer
deus amava-me como era amava o que eu amava e comigo comungava da vida porque mo disse e ele não é mentiroso      apenas um pouco preguiçoso
quantos são os que neste momento lhe dirigem fervorosas orações mantras credos petições paters      e aos anjos e santos      e as ave-marias      há santos santas e anjos para tudo
e os que já estão no reino dos mortos de quem nunca mais se ouviu falar e não foram ouvidos      o vosso deus está surdo e mudo


os que me conhecem sabem que hoje não sussurro orações aos ouvidos das divindades modeladas pelos homens na sua fraqueza terrena      a minha religião não é a deles      as suas crenças prometem a salvação e são elas que carecem de ser salvas      salvem os estupores das religiões

a ninguém pedi a vida      ou pedi      não pedi para viver      será que insisti    
esforço-me por aceitar      não farei perguntas
fodei-vos com as vossas teorias

estou cansado      exausto de interrogar filósofos e livros      queima-os josé deixa de ser asno       
quis indagar a vida e li nos olhos da morte
quando acabar tudo acabará        maldita sorte    

queria dormir      dormir profundamente embriagado nos braços de uma mulher      de todas as mulheres     
queria lá saber o que é o bem e o que é o mal
o bem está para o mal como o mal está para o bem
um é padrasto do outro
e da merda do mundo com a ciência dos borra-botas
e dos padrecos com as suas lengalengas
e dos políticos pestilentos em são bento
e dos filósofos decadentes

peço rum e mulheres ó deus dos deleites
ouve-me a mim que não sou como eles

muito aprendi outro tanto esqueci      veio a paz quando com desprezo tudo repudiei e acabei por aprender que não nos é possível afirmar ou negar nada e que em tudo há uma praga

o mistério da criação      queres ver deus olha para o mundo diziam-me os teólogos      a beleza das paisagens      não      por detrás de tudo vinga na cadeia alimentar a maior das violências      respondia
     
pouco me preocupa saber se o vosso deus existe ou não porque sei que nunca o saberei e se existe é um deus de furor que ama a violência
só o meu deus existe      deus do prazer e do amor

não estou certo se existe justiça divina ou misericórdia      existam ou não estou em paz confiante e indiferente porque sempre fui autêntico apesar de imprevidente      nunca ocultei os meus vícios e os meus mais terríveis defeitos nem os mais torpes desejos nem impiedades nem os intensos cios     
por vezes humano outras animal sem tino sem destino e sem razão nos dias fugazes que correm velozes como a água dos rios e os ventos secos do deserto               creiam          há dois dias que me deixam indiferente      o ontem que morreu e que já sepultei e o amanhã que ainda não nasceu e que não sei se e como o viverei

jornadeei no caminho oblíquo      colhi o fruto da verdade da árvore da vida e do gozo     
sonho e sono sobre a terra      sono debaixo da terra      sobre a terra e por baixo da terra corpos que jazem      para onde quer que vá onde quer que fique      o nada      um deserto de nada      homens que chegam homens que se vão      que partem      para a terra-do-nada

quando eu me finar comigo hão-de morrer os néctares da noite os lábios rosados olhos negros rasgados das mais belas mulheres      exterminar-se-ão os crepúsculos e auroras de êxtases

quando eu for sepultado escrevam no meu túmulo
aqui reside aquele que sorveu a essência da vida     


quando era criança na igreja sentado rezava orações incompreensíveis e voltava a casa com o coração cheio de confiança      agora e até ver velho e cansado quando me sento numa delas procuro a sombra o silêncio a paz e a frescura e deixo-me adormecer pensando tão-somente que ali estou simplesmente ali à espera do nada a querer nada

pobre de mim que já não acredito naquela estranheza da trindade e no deus de abraão
a liberdade e sua solidão      um corpo nu e só no esplendor da noite      alheio ao prazer
peço rum e uma mulher      mas será que peço

quero lá saber da minha saúde      fumo um cigarro      quero lá saber da salvação      que se salvem os sendeiros     o paraíso está cheio de virgens e frutos pendentes de árvores gigantescas      brutos-visionários pagai-me já a viagem      nobres alimárias como vos enganais      o inferno sois vós

vivo como um príncipe e morrerei sozinho como um cão      a escolha é minha      nascemos para nós e morremos sozinhos

onde estás tu meu amigo das noites errantes das boémias cantantes      onde estão os outros nossos aliados      tê-los-á abatido a morte na sua vida sem regras e desnorte      sorte ou azar quem o dirá            onde estão agora      pareço ainda ouvir as suas vozes alegres      estarão mortos ou embriagados de connosco tanto ter vivido
setenta vezes sete vidas vividas foram as nossas      nada a carpir

pelos bares e prostíbulos vagueávamos      leitos muitos      fêmeas      rum e fêmeas
embriaguez sem arrependimento
breve a vida      escasso é sempre o prazer

nunca hei-de saber nada      mistérios      que porra
quero o paraíso aqui
o meu deus não semeia o terror nem pede súplicas
não se incomoda com os ateus      ignora as beatas      diz que os santos são doidos os papas impostores      os padres proxenetas e isaac jacob abraão e ismael uma invenção
peço rum e uma mulher      o resto que se dane      quero-o agora
ouve-me satanás      encheste o inferno de padres beatas-falsas moralistas poderosos a quem comemos as mulheres      és o dono do passado      deus do porvir e eu do agora
nada é superior a deus      dizem      eu sou esse nada vivido
bebo este gin beijo esta mulher penetro-a uivo de prazer no eterno e tu a arder no transcorrido      gozo o momento nas férias que a morte me dá      não me convences anjo-da-revolta      boémios ao paraíso puristas ao tormento subterrâneo  

liberdade      liberdade      peço liberdade
livre de condicionamentos falsos-pecados invenções tenebrosas leis e moralidade

o que será de mim depois da morte
merda      o nada no todo      ser feliz hoje      o amanhã não sei o que me trará
terás algum poder sobre o teu destino      imbecil      tolo      criatura frágil e inquieta      por que te amedronta o porvir      por que tens medo do que há-de vir      julgas-te sábio um entendido      que sabes tu asno      goza o momento goza o presente porque o futuro é como quem mente
que te pode trazer o futuro      alegria ou sofrimento       quem o sabe e se o sabe nunca to dirá seguramente
vive a amorosa doçura do agora
ama e pede que te sirvam de beber

pouco sei ou me importa saber      mentira      teologia       verdade      filosofia      bondade      religião      maldade             autoridade      mas procuro sempre um vinho de qualidade      nasci e vivi com ele      
uma cama em desalinho     
não a sei fazer nem quero aprender      
os meus cabelos embranquecem      meus ossos enrijecem      sessenta e dois anos      ser feliz hoje ou nunca      amanhã talvez já não tenha forças talvez seja tarde com a alma vendida ao diabo nesta vida breve como um suspiro
o universo é um sonho      a vida é um sonho
não há caminho                não há caminho

quero dormir      o sono é uma morte temporária e a morte um sono para sempre prolongado

bem e mal combatem pela primazia neste planeta      lobos e predadores ladrões mentirosos criminosos políticos ranhosos      o céu não é responsável pela celebridade desgraça ou felicidade que o destino nos reserva      não lhe agradeças nem o condenes vás por onde fores já que nada se preocupa com as tuas míseras alegrias ou com as mais terríveis das dores

neste mundo é nosso destino sofrer para depois em agonia morrer       com algum prazer não quereis dar à terra quanto antes o vosso corpo miserável ele que é a fonte de todo o padecimento      e a alma     perguntais      pela qual deus aguarda para o juízo final      ficai descansados que logo vos responderei quando for avisado por alguém que regresse da terra-dos-mortos

todos os reinos e riquezas todos os impérios e suas fortalezas todas as bibliotecas e livros toda a sabedoria  por uma garrafa de rum
todos os hinos de amor pela canção do copo que se esvazia e por um corpo que se anuncia


queima os teus livros de orações      incendeia as tuas crenças      aniquila as tuas religiões     pensa com atrevimento e defronta sem temor o céu e a terra     faz do pobre e do oprimido a tua dor      bebe e ama     
ama mais que o deus dos homens amou


és dono de um novo império



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