ANTIPOESIA

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ANTIPOESIA

quarta-feira, 14 de abril de 2021

DESCONSTRUÇÃO XV

 



***



um muro em campos pérfidos ungiu-se de pesadelos


um mundo decadente destaca-se dos raios de sol doentes

tão amarelecidos                     cor de tabaco envelhecido


não recuo        tenho as minhas lembranças de um passado presente nos corredores do futuro        flutuo nos cúmulos ancestrais        nimbos de um planeta amaldiçoado


são anos        são dias        são horas que percorrem silenciosamente os caminhos da noite sem estrelas


        um corpo atravessa o nevoeiro


        do mais profundo dos tempos ouve-se uma voz

        com uma cicatriz no som


              a terra que habito

              vestida de farrapos

              exibe sua espada

              astro cintilante


              à porta dos celeiros

              roídos pela putrefacção

              eis que aportam

              os mercadores de escravos

              com os seus guardas

              da noite tisnada


              na escuridão dos sonhos desfeitos

              nas pedras tempestuosas da muralha

              estendem-se nos silvados

              corpos húmidos de sofrimento


              dores que se erguem no coração de ferro

              nas paredes por caiar

              nos cactos manchados de sangue

              vermelho vivo de quem não ousa amar


              vivemos no meio das feras

              em lugares selvagens

              que ninguém quer habitar


              há lobos e ladrões

              lamentos por vingar

              terra de tormentos

              flores de todas as latitudes

              arbustos de todas as longitudes

              a murchar num único gemido

              em cada rosto abatido


um homem sem trabalho        fome na mesa de carvalho

escassez centenária        a varanda deserta        os lírios esvoaçam doentes e doces nas palmas abertas das mãos em flor


existo        parece-me


eu e o silêncio


os anjos não cantam

como cantavam quando eu orava solitário na igreja da aldeia


as poucas mulheres deixaram de cantar


a lua desapareceu nas águas do lago


a silhueta do teu corpo vivo como a morte nas margens do ribeiro

não passa do odor a tempo que se desmorona na cidade que desperta


odor a mofo        hipocrisia gravada nos muros


nomes dos amantes esquecidos        a eternidade acaba aqui


o r vai hoje ser enterrado        com ele a ilusão e a bondade        a droga e o álcool nunca foram os seus vícios e defeitos

foram o seu grito de revolta

continuará a gritar no pequeno campo-santo enquanto a terra for terra


haverá pontos de luz infiéis às sombras

nítidos como punhais de guerreiros destemidos

enquanto as fotografias dos heróis de antanho caem no solo árido como folhas de palavras quotidianas sem significação

descansa agora        amanhã seria tarde


é inverno

a casa vazia

as ruas desertas        os cães já não uivam        estão velhos e sem forças        arrastam-se no pó das bermas e nas pedras da estrada

serenos vagueiam os vírus do futuro

não se pode amar        a peste tem as suas qualidades e conveniências

imposições rígidas        sem que faça um favor que seja

ninguém ama ninguém        ninguém se ama

porque ninguém sabe o que é o amor 


com vinte e quatro anos queria tão-somente retornar à casa das noites frescas de verão

homem-menino com o coração a transbordar de esperança

destroçado na criança antiga

o violino no canto da sala a presenciar as longínquas dissertações da vida sobre aquele a quem chamamos deus

especulações da morte        meditações do fim

luz e três dimensões        uma quarta e uma quinta

rememora-se na falsidade da história os espectros voláteis

o olhar pudibundo dos falecidos        olhares perdidos na penumbra da solidão das janelas cegas

um pedaço de pão negro        azeitonas curtidas

tudo a contrastar com as paredes enegrecidas pelo fumo das lareiras e braseiras de granito e bronze


o fogo aceso        as chamas do frio

quem te visita neste inverno

pureza do destino a rastejar na neve

golpe letal cravado na alma

raiz das chagas em cinza

o sangue ardente coalhado lentamente


crescemos a evitar a morte

no centro dos aromas de jardins infernais

assombrados por demónios        pelas ferramentas da má sorte

pelos fantasmas das raparigas

nas saias rodadas com seus decotes

procuramos o amor na água que inunda os campos e faz crescer o fruto e o pão

na seca rebanhos de cordeiros agonizam nos lameiros

paixão desconsiderada        amor desfeito

renascerá na próxima primavera para  morrer no outono

e voltar a nascer no inverno ou no tártaro das almas perdidas


os estilhaços em círculo quebram a imensidão da paisagem

tingem a terra branca de escombros

há fitas de cabelos que rasgam o vento

relâmpagos cruéis         pedaços de pensamento

um pássaro chora nas ramagens do medronheiro

mais valeria nada saber        ver        apenas ver

queremos ser felizes        temos os olhos vazios

partir sempre em doce voo

deixando para trás esta terra contaminada por larvas e parasitas


      a beleza arde na superfície dos rios

      nas águas correntes do amanhecer

      eterna e efémera

      bem-aventurada e ansiosa

      são assim as horas da vaidade e da arrogância


uma mulher com lágrimas nos passos perfuma a calçada iluminada pela chama das palavras mordentes

um sossego enorme percorre o oceano deitado sob um encantado céu de nuvens e raios de sol perdidos

riso inflamado de aves que trespassam o vácuo dos corações envenenados 

reflexo da liberdade nunca por humanos alcançada

implorando ao medo da fúria um miserável passado


passeava a primavera pela mão cantando afeição

a lua cheia colheu a rosa de carne ceifada e deixada ao abandono

por detrás dos vidros opacos da janela ninguém

ninguém para ouvir o ruído surdo da infinita planície 

mantas grossas e esventradas suspensas da cama onde dormira um menino precocemente morto

a centopeia das estações ergueu-se numa nuvem de luz

um passe de mágica com a liberdade latejante cravou-se à cruz dos anos vividos        dos remorsos escondidos

porque te ris        perguntou-se

tantas amantas de formas suaves          disse

e agora a consumir-me na sombra desta ruína

cospe a vida        cospe o amor        cospe a morte e a dor

enquanto o sol entre as nuvens alumiava o artista do pecado venial    

pecador desesperado          mais pecador do que o pecado

mais desespero do que perdão


uma andorinha fez o seu ninho na verdade ignorada

no beiral da casa ao lado        beirado da vizinha reboluda

cadela fiel ao seu dono desaparecido além-mar

nostalgia de um corpo que se esgotou nas ondas da praia

e que agora não é visto ou procurado


esvoaçam anjos no campanário

 a sul o mundo estreito e incógnito dos martírios e dos punhais cravados nos açoitados

a oeste o mar        esse mar angular e sangrento

mar que também há-de morrer

do norte vem o vento em longa viagem

tormento              cinza ou chaga

jardim de açucenas 

a este onde as árvores definham de tédio nas florestas virginais

os caçadores selvagens aguardam pacientes os animais sagrados 

rumor de passos             ramos quebrados

corações pulsantes        um estrondo amedrontado absorvido pelo crepúsculo

animal abatido                estranha festividade


gozemos a felicidade        mesmo desamparados

os demónios circundam o lago gelado

ao longe o silêncio de um piano

música e anseio de dedos decrépitos        artrose do tempo

percussão das agudas e das graves        incessante crueldade

pobre instrumento gemente

não há mais música que seja pura ou inocente ou mística e oculta        clave de sol aparente 

na tarde cinzenta uma partitura melancólica e decadente 

como toda a arte que não nasce espontaneamente


um cego                 quieto e inofensivo

a alma disponível a todas as impressões

assobia uma canção misteriosa        triste como a cidade

a gente passa        rompe as ondas da multidão

e o cego sentado à beira do corrimão assobia lentamente de olhos abertos

o som nascido de cifras do corpo e da alma é sua sede e sua água

chove        perde-se no infinito        no regaço firme da eternidade     

mas        de noite enquanto dorme sonha com abelhas douradas        mulheres de bronze        seios de amadas que nunca teve

e sonha com deus        um velho de barbas brancas encrespadas

o que é a realidade

um volume        uma forma        uma cor        um pensamento        a madona sem filho ou uma criança que brinca no fim da tarde

      no seu sonho

      quantas valsas não dançou

      quantos peitos contra o seu não estreitou

      quantas bocas vermelhas não beijou

nesses sonhos e longínquos horizontes salpicados de momentos felizes e de choros subtis suspensos dos candeeiros do caminho empedrado amou o tudo e amou o nada        o amor e o ódio

êxtases quiméricos de criança que nunca viu o sol nascer

de adolescente que incansável ouviu o canto furibundo das casas pardas da avenida


homem a irradiar pobreza e a cuspir o sangue friamente semeado pela solidão

velho abandonado        sem desejos        apegos

olhos tristes de sal na enxerga inundada


a sentença tinha sido proferida

o destino do ser                     o cadafalso do imaginário

basta

os campos sobrevivem no tempo imprevisto da lavra

a vida é isso                           pouco mais

hoje vivos        amanhã desamparados ao vento e às ervas

quem és          quem eras

um símbolo      um grito        um pai austero

ou um humano             gentil        carente        frágil

compassivo

que interessa        um ser vivo na água da levada que arrasta consigo todas as pontes

a doença        um roseiral de falsa esperança com a morte por derradeira

um dia todos estaremos mortos e não seremos mais lembrados             cegos              surdos              mudos

génios e insanos

um dia todos estaremos vivos        irremediavelmente vivos na fria transparência de mansa nascente

ouvindo stravinsky na sua russa dança


rafeiros latem na aldeia        uma nuvem de duas faces oculta a lua

o poeta encanecido escreve um par de versos numa folha amarelecida        tarda a amanhecer

quando a chuva cai em pingos grossos o pensamento tem outra velocidade

tu e o teu sonho        de que serve a perfeição se ninguém saboreia o teu hálito

tão necessária essa esperança incógnita semeada nas montanhas atraiçoadas pela paisagem enevoada

      amparem-no que dorme

      sustentem-no que tem fome

enquanto o universo se move em círculos

e nos geométricos quadrados de furtivos sentidos gelados

o tempo passa                        tudo passa

a sorte está morta no centro da caminhada


      vejam

      o leão de pedra ruge

      os tabiques da capela com as rédeas entrelaçadas


a porta principal da igreja aberta à borrasca dos indigentes


uma andorinha voa em círculos tal anjo em pranto


cantam as mulheres ao santíssimo e tu deitado sem te moveres        criança aprisionada num vidro luminescente com um lenço bordado a fio de prata sobre a cara

o leão de pedra voltou a rugir

som que só eu poderia ouvir        segredo do meu rumo perdido num oceano sem margens

agora a luz        a espuma junto ao costado        a escada incendiada e o céu tão distante        tão separado da terra


um arco                           uma flecha

a alegre correria de um grito compacto

a estátua do toureiro        do matador de touros e dos cornos do desprezo

paredes de pedra irmanadas com as de cimento

corpos vivos em movimento que permanecem sentados no silêncio erguendo os seus punhos ferozes e tristes

corpos vivos a apodrecer em cada momento da existência sombreada

o ódio dos mortos por inumar

populaça que vejo e leio com o olhar simples e humilde da ignorância vespertina que partiu e que não mais irá voltar

também eu quando morrer não saberei para onde ir nem terei onde repousar a cabeça

      restar-me-á ficar com a pele enrugada

      o olhar perdido na vastidão do infinito

na plenitude do eterno com a alma junto ao tronco fendido onde possa sossegar num fio de luz divino

estou preso aos dias          remorsos do tempo que injuriei   

por trilhos angulares e detraídos

pertenço à primeira dinastia dos anciãos revoltados

tardia é sempre a iluminação dos desesperados

lenta tarefa de quem escala as estrelas maduras da dor e da negrura

preso ao medo e às lágrimas do soldado entrincheirado no lamaçal dos regimentos ocultos e dos batalhões esventrados

agrilhoado ao fumo das fábricas construídas mas margens de rios e mares assombrados

detido pela consciência da oração repetida e imóvel do lago celestial


pranteio e sorrio

vi uma a uma        outra e outra        menina e virgem

      navegarem no coração do meu veleiro

      vi o fogo nos seus rostos

      os mistérios pendentes dos seus sorrisos

      o troar das florestas enfurecidas 

      das tormentas do mar a inundarem as praças da cidade

chicoteadas por cristo tantas vezes morto        traído e torturado

      valsas nos céus

      trepadeiras nas nuvens

      batalhas de flores

      ervas daninhas

miseráveis escombros da felicidade anunciada por guerreiros em formação de desordem        anarquistas do proletariado

caóticos e submergidos em mágoas sepultados

alguém lhes poderá devolver a cor        são cadáveres amarelecidos e inchados sem o poder do espírito

sem que de si sejam donos

possuidores de mil demónios              que legião

ninguém        ninguém lhes dará a vida        apenas pedras sobre pedras para que os lobos inquietos os não possam desencovar

da vida e do nada        forças cegas que nascem dos genes da infância no íntimo da candura e de uma espera ultrapassada

      fenece-lhes a fé

      nasce-lhes uma nova morte

      o medo do além        do vazio        do nada

      progredindo lentamente sem um novo amanhã


conto as vidas que vivi em todos estes anos

a infância com os seus canteiros de flores variadas

a fé cega        fruto maduro da verde esperança

as abelhas no cortiço revestido por pedaços de árvores por mãos humanas decepadas

tudo tão fiel e inócuo na unidade das coisas

tinha de viver        continuar vivo    vegetar

morte incerta

fumo sempre o último cigarro        quando não sei o que fazer

como sempre a última refeição        odeio comer

amo sempre pela última vez            sei lá o que é amar

           morro para renascer

           morrer é viver e viver morrer

escrevo a carta que nunca escrevi        sem destinatário terreno e sem remetente

escrevo-a        envio-a para que não pese na alma na viagem que amanhã farei

inundo-me de paz        de música angelical        de névoa

deixo-me adormecer

neste derradeiro entardecer


humildade        simplicidade        tranquilidade

bem-aventuradas as horas das esferas sem princípio nem fim

luminosas e transparentes águas que brotam dos nascimentos prematuros

espelhos da ilusão de fecundas auroras e misterioso anoitecer

abraço de golpe letal na paciência infinita

da não-existência


diz-me a quem o vento açoita

à fome e movimento da dor que cresce nos membros mirrados e pacíficos dos indigentes

pés ensanguentados arrastam-se pela ponte fria

húmida e escura

geada envolve amorosamente os pilares amarelados pelas luzes das margens fugidias

agonia da lembrança das infecções campestres e das ilhas contaminadas

um navio ajoelha-se docemente nas águas pardacentas

      mais ao largo 

      uma multidão reúne-se no cais

no meio das algas o corpo esbranquiçado e roído de um afogado

      escuta

      o som da noite

      da madrugada

      do dia chamejante

compreende o que te digo        a névoa e as cinzas da memória aguardam-nos na sua resignação quase eterna

a paciência é mais uma qualidade animal que humana na sua infinita dormência

fomos definitivamente esquecidos        assim como a corrente das glórias do passado

não nos libertámos das redes do desejo        mergulhámos nos regatos do apego

nas cinturas finas das mulheres petrificadas pelo orvalho

de que servem pois os sacrifícios realizados nas bermas dos caminhos ensolarados ou as orações infantis que mais não são do que ciladas do maligno a apelar ao pecado 

 

a esta hora tardia há quem ainda esteja em vigília orando

e quem acorde de um curto sono rezando

veias salientes iluminadas por velas apagadas        nomes mortos que retornam todas as manhãs        o cipreste da praça cresce na vertigem das frases imberbes dos turistas

desastrosas como lanças aguçadas

no café a pestanejar um velho lê o jornal

lá fora o rumor dos pneus nas poças de água ensanguentadas        prazer e mágoa        sombras        sombras aladas        o fumo dos cigarros dos transeuntes sem rosto

a vida envolve os corpos dormentes          povo que passa

morte que ignoro por agora        o que está vivo já morreu uma        duas ou milhares de vezes

o que ficou esquecido não renasceu

haverá amor              paixão              encantamento

não        há o hábito        estes vasos de argila e o sono sem lamento

que venha a música do sono e do sonho

o nada que envolve o profundo

como uma pedra cinzelada ou uma árvore nascida da carne

regada a sangue        alimentada pelas vísceras dos animais

sem discurso poético ou prosa rimada anunciada em cartazes luminosos distribuídos pelas estradas

as órbitas vazias        as vigílias das sensações com um forte odor a miséria e a desgraça

tanto por tudo                              tanto por nada

quando tudo finda na vereda tresmalhada da mente

quando tudo o que fica para trás é um ossário ausente


ofereces-te imóvel        nasceste do amor entre as distâncias

podem as entranhas mentir

a pele do teu corpo feita de água salgada e beijos

a ingenuidade da charrua lavra um dócil sorriso no teu coração        dos lábios rubros nascem artérias invisíveis que germinam sob a terra

espinhos da carne que lampejam no sonho da insónia que abraças no leito

agora o rio arrasta os destroços das últimas batalhas   

as raízes das árvores insidiosamente arrancadas

o sol poisa na superfície das águas        ilumina uma mão crestada e um cigarro apagado

mais uma alma sem abrigo num mundo de estátuas e trilhos de pedra aparelhada

talvez fosse uma mulher assinalada pelo suplício        uma sombra viva vergada pelo peso dos ombros frágeis calejados da felicidade ausente

distante        com o olhar poisado no horizonte perdido

presa às finas redes da melancolia 

fala-nos sem que profira sonoridades cingida pelas espessas trepadeiras das terras húmidas e pantanosas 

sem alento                sem uma margem onde aportar

murmúrio de dor na ausência de uma boca para beijar  

que fazer    afinal nem todas as tardes são calmas e delicadas        quietas e fiéis a si mesmas

há sempre lesmas e vermes fluindo de sorriso em sorriso

de gemido em pranto


      continua o teu caminho

      não olhes para a tua sombra

      deixa tudo para trás

      não és ninguém        ou és

uma gota de orvalho no leito não permite que sossegues

a casa é branca        a lua é branca        o espaço transparente                  o corpo limpo fede

a estrela da manhã nasce do nada enquanto ondas silenciam o rumorejar do mar apaziguado

põe os pés na neve        arqueia a tua coluna        esfrega as mãos uma na outra        bate palmas ao porvir com o som de uma só mão

o mundo amanhece e anoitece

uma voz oculta cresce rumo à tua crença de menino

catástrofe de um momento nascido na nossa língua

sangrento            seco como um deserto sem oásis

parte para uma terra nova

pássaros azuis nas ramagens dos cortinados da varanda a sul                                 beijos que florescem

as mãos vazias na escuridão da primavera cruel

albergando a dor do castigo vão        consequência de faustosa vida

não entendem o que dizes quando falas sem palavras audíveis

concordo        o silêncio vale mais do que todas as livrarias e discursos

e ser        ser como o é o pinhal        o fruto incendiado no pomar        o sensual correr do rio na direcção do nascente        o pardal vagabundo        um eterno navegante        um mistério        um sinal


      uma ave rasga o céu

      terra        ar        fogo        água

      música divina ignorada

estamos adormecidos como a loba selvagem saciada no covil

não há um único som no salão

o oceano turquesa aguarda pelos banhistas gregos

a filosofia é hoje construída pelos corpos seminus nas praias

no horizonte veleiros pérfidos com andrajosas velas de calmaria içadas em mastros de iguarias        em cada adriça um escravo

despertai        a revolução da tormenta de braços abertos ao movimento dissonante do mar

no leme circular o centro do mundo em chamas

nuvens garbosas em debandada        o presságio do novo dia no relevo rochoso da costa a este

quem é que não quer descobrir um novo mundo

marinheiros embebidos em rum dormem no convés apodrecido        miram-se nos estilhaços do espelho da mezena

uma ave volta        espada de luz a escanar o ar de metal fundido        volta para não mais voltar        vai-se num suspiro          tão delicada na luz pesada da inexacta eternidade

       corpo vasto no universo da idolatria

       a praia vazia

       palavras apagadas na areia

       na morte de mãos dadas com as luzes da cidade


quantas vezes a coragem não é mais do que cobardia

medo        o pavor pardacento dos corpos no espaço cósmico

sem segurança no viver insistem tais cães acossados por reflexos articulados dos espelhos confluentes

cautelosos pisam a areia que arde nos trópicos e a terra ardente das montanhas desnudadas

vivem num ataúde florido que as águas impelem para os mares acariciados pela brisa que ao entardecer varre as lágrimas sem fim


o silêncio é sempre uma oração        silêncio não só da boca mas também da mente

      um deserto cheio de ti

      um mar assombrado

      uma montanha rasgada por um vulcão adormecido

      um amar quebrado pelo tédio

      tens espigas douradas nos braços

      és frágil

      franzina e volátil

desapeguei-me do passado e peço        peço o presente

o instante que abre sulcos de luz nas almas que morrem entre as árvores ressequidas das florestas doentes

deixo-te o meu fio e a cruz pendente

parti para uma região onde os fogos nascem nos corações dos homens

ausente         sim         ausente

           que me importa a sede e a fome

           a tempestade e a bonança

           o amor e a saudade

           parti sem deixar rasto


tenho vivido como um escravo de mim mesmo

poderá existir pior escravidão           não          talvez não

chegou o tempo da existência em que devo conceder-me a alforria        emancipado do passado

      de desprezado a humilde

      sem conhecimento e com sabedoria

      cansaço atroz do quotidiano

      embriago-me de alegria


tantas vezes enfrentei a derrota        arrependimentos

pesares        remordimentos        negros pensamentos

                    o sacramento

                    o sacrifício

                                       uma rosa

                                       desperta

                                       no frio  

            navegar no suplício

            num velho suspiro

diante da igreja

                       três vezes repeti

                       as palavras

                       que por malícia

                       ressuscitam os mortos

                       que os dão à vida

como está escrito        pela palavra se perde e pela palavra se salva

admitam se quiserem        os anjos das fotografias a preto e branco são máquinas de guerra        por isso cada homem tem um que o arma para o combate da violência demoníaca

grandeza de exércitos alados separados pelo ritmo infernal do bem e do mal

         legiões sem máscaras

         rabos de cabedal violáceos

feridas produzidas por punhais de aço temperado no inferno

nos pássaros que sangrantes percorrem o espaço

presenteados pelos despojos        pedaços de carnes em decomposição


a natureza revoltada multiplica-se em calamidades

não quero falar de inutilidades      sempre as houve e sempre as haverá

a dispersão do pensamento é o útil quando retira o peso que recai sobre os nossos ombros

e fútil quando faz com que o espaço espirre

por ora que se lixe a pandemia

- com o respeito devido aos mortos e aos que sofrem –


a decisão de um tribunal      

magistrados que nem putas em luta aguerrida por um mesmo cliente

                     onde isto chegou

da pandemia à justiça nas televisões      pobre povo pacóvio e inocente

         deixo que o meu cérebro rebente

         destruindo as reflexões


ouve as vozes da idade heróica

uma idade de ouro      outra de prata      outra de bronze

a falta de disciplina dos exércitos circunscritos a cercados de gado com o pasto seco inundado por sangue derramado

generais com o olhar enlouquecido a brilhar na noite

centuriões com blenorragia      soldados com escrófula e avariose

combates em roupa interior        as armaduras são frágeis

o chão incerto para os cavalos

desilusão para os estrategas acantonados na tenda furiosa do planeamento


agora há marechais com moedas no peito

secretárias vegetais na sede do comando

tudo contingências para além do nosso alcance      faz-se a guerra por uma razão que esconde uma outra

justificando o que não pode ser justificado      a mentira vestida de verdade

nas árvores da planície sangrenta as aves deliram

cantam em grupo desafinadas

há que seguir o rasto dos feridos e o vómito dos mortos

uma brigada de reconhecimento avança em losango ceifando o mato sensível

que descarnado os irá denunciar aos atiradores furtivos

que mais se pode fazer                   ordens são ordens

cumprir ou não cumprir                      morrer ou viver


apreciava ser cem vezes mais forte do que sou

mil vezes mais inteligente

- esperto não      que a esperteza é a mãe da infâmia –

um milhão de vezes mais

- sei lá o quê –

sem camaradas a quem foram arrancados os membros por engano

            um erro é sempre um erro

            mesmo que seja verdadeiro

            ou justificado por um brigadeiro


temos escrúpulos em demasia

não lemos a história dos homens com cotos que sobreviveram à maçada da morte


procuro-te entre tantos corpos

a terra coberta de vermelho e linfa exala um perfume quente

      divirto-me naquele paraíso de paz

      esqueço quem sou

busco a memória nos corvos atónitos das ramagens ressequidas


tenho nos bolsos duas madeixas dos teus cabelos negros

elas far-me-ão voltar deste crepúsculo vazio

túmulo inóspito e frio a céu aberto

onde consigo sempre ouvir um requiem em ré menor

único que trago comigo

         as vozes lamentam-se

         o primeiro violino modela-as

         tudo como num funeral sem umbigo

o cortejo melódico trespassa-me o coração  em chamas

requiem de vivos na desgraça da fome      do canibalismo vivo      da desgraça e da miséria          à espera da morte


kyrie eleison


a alma voa em círculos         não dorme nem sonha

observa

vive o seu outono de folhas descoradas e pendentes


uma pausa

para que se desembainhe a espada suja com o sangue coalhado dos desertores

a violência do medo na guerra-de-ninguém

os humanos inventam pátrias a defender usando a coragem dos deserdados nas linhas da frente

nas trincheiras e nos combates de peito aberto 

enquanto

            à retaguarda os filhos de nobres e poderosos

            acenam no porto ao embarque dos amigos pobres  

            ficando nos comandos de armas

            em secretárias sentados

prontos a bater em retirada

quando as paliçadas

são derrubadas


nuvens escureceram o campo

lutaram por menos de trinta moedas

enfeitiçados por um falso patriotismo

onde defenderam os interesses

dos que ao confronto se negaram


     débil e arqueada

     a bandeira rasgada

     suicida-se numa lentidão 

     escalonada


     foi-se a guerra

     veio a revolução      falsidades      corrupção

     veio a pandemia

a incompetência      a velha      a serigaita      o poupinhas     o papudo      o gordo      o hipocondríaco

             tudo em conivência

             esqueçamos o que para ficar veio

             temos o orgulho de ser humanos

             pensamos como guerreiros luminosos

             sem a simplicidade dos pequenos

             e a humildade dos silenciosos


dâmis ergueu um monumento ao seu cavalo de guerra esventrado


ártemis encheu de peixe a nossa rede

alimentando os náufragos da batalha


confutatis            a crueldade inicial do canto que só dura enquanto a claridade permanece

deixo de ouvir

a prostituta que gemia estridente                      lacrimosa

      agora no chão caída

      jaz sem boca           língua e voz

      em vida não defendendo a sua virgindade

      sabendo que nos infernos nunca iria encontrar amante

      para lhe dar o prazer de cípris


os soldados não escolhem

branca ou negra

que interessa                    no aqueronte seremos carne putrefacta      depois ossos                e por fim

pó e cinzas

      aliás o carvão é negro e se aceso e em brasa

      brilha mais do que rosas ao sol do meio-dia


zéfiro o vento

separará o pó dos restos mortais que alimentaram os animais selvagens


as catedrais da música foram destruídas por obuses e canhões

      as cantoras líricas emudeceram

      os cantores morreram

      restam-nos os pássaros da colina

      estorninhos e cotovias

      cucos e pardais

e o roçar do vento nas cordas das árvores e arbustos dispersos na paisagem

e o regresso a casa



            seduz-te a beleza sem graça

            a donzela muda no leito

            dá-te o prazer do corpo

            combatente      esquece o espírito


            que esperas da vida

            para além da batalha

            e da soldada

            do vinho e do orgasmo

            nada


            enviaram-te jovem

            para a armada real

            e receberam em casa

            um homem feito e leal

            que agora no arado

            e nas horas mortas

            só encontra na vida

            um profundo marasmo


            ansiando para a guerra

            a inevitável partida


a guerra é um vício

como o sexo

o jogo e o tabaco

defeitos lícitos 


            a batalha pode ser violenta

            salvas de setas que cruzam o ar

            lanças arremessadas

            escudos que se chocam

            enquanto as espadas

            as vísceras perfuram


            na legião

            o soldado morre

            o soldado vive


   enquanto a música inunda a sala

   uma névoa azul desvanece-se

   os cenários são ruínas da consciência

   crianças esfomeadas

   dependuradas nas vedações de rede

   dos muros construídos com mãos

   de maligno ódio e rancor


cantam as águas do rio

dezenas de catraios brincam nas margens

e cantam canções populares

correm para montante         depois para jusante

juntam-se

marcham ritmadas imitando os soldados

do pelotão invasor

violador das donzelas prometidas em casamento

ao homens do povoado


      os homens fazem a guerra

      os miúdos brincam aos oficiais

      tenentes      brigadeiros      generais

      sem que saibam que suas mães e irmãs

      são por animais estupradas

      e os homens sumariamente executados

      sem que renasçam ao anoitecer

      sem regressar a casa      à ceia

      e adormecer nos braços das amadas

      enquanto a ocupação continua

      com a morte da resistência 

      e o abuso das crianças e das mulheres



memórias tristes que atormentam uma alma cansada

águas salgadas de tantos mares e lágrimas passadas


de que serve chorar

as imperfeições    os erros    os pecados

quando o coração se abre num novo ser


o tempo deu-me pesares e contentamentos

tolheu-me sentimentos e afectos

alimentou amores de tanta graça e prazer

que hoje nada têm de concreto

de nada servindo gemidos e lamentos


vou escrevendo palavras que se fazem versos

poemas que não dedico às mulheres que amei e já não amo

porque amar é mais do que partilhar um leito

e escrever mais do que ter alguém para nos ler


                      daí

                      a mim me dedico

                      e a mais ninguém



*** 

 

  

04/2021





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