ANTIPOESIA

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quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

CAPÍTULOS INTERIORES I

 

 

                                             A Chuang Tse

 

 

 

 

***

 

 

no oceano do norte há um peixe chamado kung

não sei de quantas mil li de comprimento

esse kung transforma-se num pássaro chamado peng

as suas costas têm não sei quantas mil li de largura

 

quando se move voando

as asas escurecem o céu

como se fossem nuvens

 

quando viaja dirige-se

para o oceano do sul

o lago celestial

 

no registo das maravilhas

                                    de chi hsie

lemos que quando um peng

                                    voa para o sul

a água agita-se numa extensão

de três mil li ao redor

 

      enquanto o pássaro sobe num temporal

         até à altura de noventa mil li

            para um voo de seis meses de duração

para depois repousar

 

subindo a essa altura no ar

a ave vê

as brancas neblinas da primavera

as nuvens de poeira

e as coisas vivas que exalam

os seus hálitos no meio delas

 

imagina se o azul do céu será a sua cor real

   ou apenas o resultado da distância sem fim

      e confirma que as coisas sobre a terra

              lhe parecem sempre as mesmas

 

 

      se não houver profundidade suficiente

         a água não fará flutuar as grandes embarcações

            também se não houver profundidade suficiente

                não será possível o ar suportar grandes asas

 

uma cigarra e uma pombinha riram

dizendo

 

quando voo

   com todas as minhas forças

      o máximo que consigo é voar

de árvore em árvore

 

quantas vezes não

chego ao meu destino

 

caio no chão

a meio do voo

 

para que é preciso subir noventa mil li

para iniciar a viagem rumo ao sul

 

quem vai para o campo

e leva três refeições consigo

volta com o estômago tão cheio

como na hora em que partiu

 

quem viaja cem li

deve levar arroz suficiente

para o descanso de uma noite

 

e quem tem de percorrer mil li

necessita transportar suprimento

de provisões para três meses

 

aquelas duas

   criaturinhas

afinal

que sabem elas

 

 

o saber limitado

não tem o alcance

do saber profundo

 

do mesmo modo

 

que uma vida curta

não tem a mesma

duração de uma longa

 

como poderemos

afirmar que assim é

 

a planta do cogumelo

que dura uma manhã

não conhece a mudança

do dia e da noite

 

a cigarra desconhece

a mudança das estações

da primavera e do outono

 

ambas têm vida curta

 

porém

   no sul de chu

      há uma árvore

         cuja floração e frutificação

            duram cada uma quinhentos anos

 

antigamente havia uma árvore enorme

cuja floração e frutificação

duravam cada uma oito mil anos

 

contudo

peng tsu

é conhecido

por ter alcançado

muita idade

e é objecto

de inveja

para todos

 

não será triste que toda a gente o queira imitar

 

 

há uma diferença

entre o pequeno e o grande

 

              tomemos por exemplo um homem

                   que concretiza as suas funções

                             num pequeno escritório

 

              ou cuja influência

                     se faz sentir

             sobre um lugarejo

 

              ou cujo carácter

                           agrada

             a um governante

 

a opinião que tem de si

será a mesma que a da cigarra

 

      o filósofo yung de sung

      rir-se-ia de tal homem

 

se o mundo inteiro o lisonjeasse

                           ele não se deixaria impressionar

tão-pouco se deixaria dissuadir

                           do que pretendia fazer

                           se todo o mundo o censurasse

pois

yung é capaz de distinguir a essência da superficialidade

e compreende o que é a verdadeira honra e a vergonha

 

      tais homens são raros numa geração

 

mas

 

nem mesmo ele

consegue firmar

a sua reputação

                    e é imperfeito

 

 

***

 

 

diz-se

que o homem perfeito

se ignora a si mesmo

 

 

o homem divino ignora

                                a recompensa do valor

e o verdadeiro sábio

                                ignora a reputação

 

 

***

 

 

não se pergunta a um cego

qual é a sua opinião

a respeito de um belo desenho

 

nem se convida

um surdo

para um concerto

 

a cegueira

               e a surdez

não são apenas defeitos físicos

 

há a cegueira

                  e a surdez

                                do espírito

 

 

***

 

 

o que não tem qualquer utilidade

para os outros homens

poderá porventura causar-nos preocupações

 

 

***

 

 

a grande sabedoria é generosa

      a sabedoria mesquinha aprecia contendas

 

os discursos virtuosos são desapaixonados

      os pequenos  discursos são desagradáveis

 

ainda que a alma

esteja presa ao sono

ou mesmo acordada

 

enquanto

o corpo se move

nós empenhamo-nos

e combatemos

com as coisas

que nos cercam

 

quando estamos a dormir

estamos em contacto

com as nossas almas

 

 

algumas

são fáceis de resolver

            e são comodamente aquietadas

algumas

são profundas e dissimuladas

            e outras são misteriosas

 

 

***

 

 

contentamento e ira

tristeza e felicidade

tédio e remorso

hesitações e temores

surgem à vez

sempre com

aparências diferentes

 

tal como a música

que sai de uma cana oca

ou como cogumelos

que germinam na humidade

 

dia e noite alteram-se em nós

mas não sabemos como nascem

 

poderemos por uma só vez

pôr o dedo

sobre a verdadeira causa

 

como poderemos

compreender

tudo num único dia

 

 

parece que há uma alma

 

o principal para a sua existência é querer

 

que opera       é plausível

 

embora não possamos ver-lhe a forma

 

deve ter

      uma realidade interior

                 posso senti-la

mas não tem forma externa

 

 

considera o corpo humano

com as suas centenas de ossos

as nove cavidades externas

e os seis órgãos internos

 

qual destas partes preferes

 

não gostas de todas equitativamente

ou tens alguma preferência

 

será que esses órgãos prestam

tarefas de serviçais a mais alguém

 

desde que os servos não se governam

servirão eles de senhores e servos por turnos

 

 

é inegável que existe uma alma para os controlar

 

tenhamos ou não firmado

a verdadeira natureza dessa alma

isso é coisa que pouco interessa à própria alma

 

uma vez tomando conta da forma material

prossegue o seu curso até que se esgote

 

consumir-se nos trabalhos e nos pesares da vida

e ser arrastada sem possibilidade de parar no caminho

 

não será ela digna de pena

 

trabalhar sem cessar a vida toda

sem viver para colher os frutos

esgotada pelo labor

partir para não se sabe onde

 

não será um motivo de pesar

 

 

os homens afirmam

que não há morte

o que é que isso lhes adianta

 

 

o corpo decompõe-se

e o espírito desaparece com ele

 

não será isto motivo para tristeza

 

será que o mundo é tão estúpido

      a ponto de o não compreender

         ou serei eu somente o estúpido

   e os outros não

 

 

se devemos deixar-nos guiar

pelos nossos preconceitos e ideias

quem será que ficaria sem um mestre

 

que necessidade haveria de fazer comparações

sobre o que está certo e o que está errado nos outros

e

se alguém deve seguir o próprio julgamento

de acordo com os seus preconceitos

saiba que até os loucos os têm

 

mas produzir um julgamento

   do que está certo e errado

      sem primeiro ter uma opinião

         é o mesmo que dizer

            parti para yueh hoje e cheguei lá ontem

ou

é o mesmo

que afirmar

que algo

que não existe

existe

 

a ilusão de afirmar algo que não existe como existente

não pode ser conseguida nem pelo teólogo yu

e nós muito menos o poderemos penetrar

 

 

a palavra não é um simples sopro de hálito

             foi criada para dizer algo

apenas não se pode determinar o que dizer

 

há na verdade palavra ou não há

podemos ou não podemos distingui-la

do chilreio dos filhotes de pássaros

 

 

como é que o tao

pode ser tão obscuro

de modo a necessitar

que haja uma distinção

entre o verdadeiro e o falso

 

como pode a palavra

ser tão obscura

de modo a necessitar

que haja uma distinção

entre o que é certo

e o que é errado

 

 

onde poderemos ir

e pensar que o tao não existe

 

onde poderemos ir

      e pensar que as palavras

            não podem ser ouvidas

 

o tao não pode ser inteiramente apreendido

por via da nossa compreensão inadequada

e as palavras não se apresentam com perfeição

devido às expressões retóricas floreadas

 

daí

que as afirmações e negações

   das escolas de shih e fei

representem julgamentos morais gerais

   e distinções mentais

certo e errado

verdadeiro e falso

ser e não ser

afirmativo e

negativo

bem como

fazer justiça e condenar

afirmar e negar

 

as escolas de confúcio e de mo tse

cada qual negando o que a outra afirma

e afirmando o que a outra nega

cada qual afirmando o que a outra nega

e negando o que a outra afirma

só pode resultar em manifesta confusão

 

o melhor a fazer é olhar

para além do certo e do errado

 

 

não há nada

                 que não seja isto

não há nada

                 que não seja aquilo

 

o que não pode ser visto por aquilo

pode ser compreendido por mim

 

só se podem conhecer as coisas

através

do conhecer-se a si mesmo

 

daí digo

isto emana

daquilo

aquilo também

deriva disto

 

esta é a doutrina

da interdependência

disto e daquilo

 

não obstante

a vida resulta da morte

e a morte resulta da vida

 

a possibilidade

                  decorre da impossibilidade

e a impossibilidade

                  decorre da possibilidade

 

a afirmação

                  baseia-se na negação

e a negação

                  baseia-se na afirmação

 

 

sendo esse o caso

o verdadeiro sábio

rejeita todas as distinções

e refugia-se na natureza

buscando a iluminação

que lhe vem do céu

 

 

precisamos entender

que mesmo que nos detenhamos no isto

o isto também é aquilo

e o aquilo também é isto

 

isto tem decerto os seus certos e errados

e aquilo tal como o isto também os tem

 

existe realmente

ou não existe

a distinção

entre isto e aquilo

 

quando o isto subjectivo

e o aquilo objectivo

não têm correspondentes

são o verdadeiro eixo do tao

o seu ponto de quietude

 

e quando esse eixo passa através do centro

                  para o qual o infinito converge

                     as afirmações e as negações

                  confundem-se no infinito único

 

 

daí se diz que não há nada

como conservar a luz

para além do certo e do errado

 

 

tomar um dedo

como prova de que um dedo não é um dedo

não é melhor do que tomar uma qualquer coisa

que não seja um dedo para provar

que um dedo não é um dedo

 

tomar um cavalo

como prova de que um cavalo não é um cavalo

não é melhor do que tomar uma coisa qualquer

que não seja um cavalo para demonstrar

que um cavalo não é um cavalo

 

o mesmo se dá com o universo

que não é nem dedo nem cavalo

 

 

o possível é possível

e o impossível é impossível

o céu e a terra são como um dedo

as dez mil coisas são como um cavalo

 

 

o tao trabalha e o resultado obtido é o seguinte

 

as coisas recebem nomes

                          e afirmamos serem o que são

 

por que são elas assim

porque se afirma serem como são

 

por que não são de outro modo

porque se afirma não serem assim

 

as coisas são assim por si mesmas

 

não existe nada

                     que não seja de certo modo

e não existe nada

                     que não possa ser de certo modo

 

 

toma por exemplo uma pessoa feia

 

e uma grande beleza

 

e tudo o que for estranho e monstruoso

 

tudo isso é igualado pelo tao

 

 

a divisão é o mesmo que criação

a criação é o mesmo que destruição

 

não há uma criação ou uma destruição

porque essas condições

são irmanadas de novo numa única

 

todas elas são uma no tao

 

 

só os verdadeiros sábios

compreendem o princípio de igualar

todas as coisas numa única

 

 

descartam as distinções

       refugiam-se nas coisas comuns e ordinárias

 

as coisas comuns e ordinárias

       servem para certas funções

e portanto conservam

a integridade da natureza

 

partindo

dessa integridade

uma pessoa compreende

e da compreensão

chega ao tao

aí pára

 

parar

      sem saber

      como pára

      e se parou

                     eis o tao

 

 

mas cansar o intelecto

numa ligação obstinada

com a individualidade das coisas

 

não reconhecer o facto de que

todas as coisas são uma única

a isso chama-se três pela manhã

 

 

o que é três pela manhã

 

um tratador de macacos disse-lhes

que cada um devia comer

três nozes pela manhã e quatro à noite

 

os macacos ficaram furiosos

 

então o tratador resolveu

que poderiam comer

quatro nozes pela manhã e três à noite

 

os macacos ficaram satisfeitos

 

o número de nozes continuou a ser o mesmo

porém havia uma diferença

devida à avaliação subjectiva de gostos e aversões

 

isso também deriva disto

por via do princípio da subjectividade

 

em consequência o verdadeiro sábio

reúne todas as coisas diferentes

e descansa no natural equilíbrio do céu

 

a isto se chama o princípio de seguir dois cursos

ou os dois lados de uma só vez

 

 

o sábio harmoniza

o certo e o errado e repousa

no equilíbrio da natureza

 

 

o conhecimento dos homens antigos

tinha um limite

qual era esse limite

 

remontava

   a um período

      em que a matéria

         não existia

 

era esse ponto extremo

que o seu saber alcançava

 

 

o segundo período

era o da matéria

 

porém

   da matéria

      sem condição

          ou período indefinido

            onde não lhe era dado nome

 

 

a terceira época

viu a matéria

com condição definida

 

no qual

         ainda se desconhecia

         o que foi depois julgado

verdadeiro ou falso

o certo ou errado

 

quando

o verdadeiro e o falso

o certo e o errado

apareceram

o tao

começou a declinar

e

com o declínio do tao

surgiu o desejo

o fim individual

 

 

além disso teria o tao

chegado ao apogeu e declinado

 

 

***

 

 

o verdadeiro sábio

foge da luz que o deslumbra

refugia-se no comum e no ordinário

 

por esse meio chega à compreensão

 

 

suponhamos

                 que haja uma afirmativa

 

não sabemos se pertence a uma categoria ou a outra

mas se reunirmos as diferentes categorias numa única

então as diferenças de categorias deixam de existir

 

devo explicar melhor

 

se houver um começo

então

houve uma época

antes

desse começo

e uma época

antes da época

que ficava

antes da do começo

 

 

se há uma existência

deve ter havido

uma não-existência

 

 

e se houve um tempo

em que nada existia

então deve ter

havido uma época

em que nem mesmo

o nada existiu

 

o nada veio a existir

subitamente

 

 

alguém poderá dizer realmente

      se pertence à categoria da existência

            ou da não-existência

 

       até mesmo das palavras

                       que acabo de proferir

               não posso dizer

                               se significam

                      ou não

                                alguma coisa

 

 

sob o pálio do céu

   não há nada maior

      do que o comprimento

         da penugem

            de um pássaro

               no outono

enquanto

que o monte tai é pequeno

 

 

tão-pouco

      há vida mais longa

            do que a da criança

                ceifada pela morte

                       na sua infância

    enquanto

    o próprio

    peng tsu

    morreu jovem

 

o universo e eu

viemos

à existência juntos

 

eu e tudo que existe

somos

uma única coisa

 

 

   se todas as coisas

     são uma única

 

      qual o lugar

   para a palavra

 

por outro lado

 

desde que eu possa dizer

a palavra única

como pode a palavra não existir

 

se existe mesmo

temos a única

e a palavra dois

e dois e um três

 

 

daí em diante até

os melhores matemáticos

deixam de alcançar o derradeiro

 

e será que as pessoas comuns

             falhariam muito mais

 

se de nada

se pode chegar a alguma coisa

e consequentemente a três

será ainda mais fácil

se se partir de algo

 

desde que não

se possa prosseguir

pára-se aí

 

 

o tao

pela sua natureza

jamais

pode ser definido

 

 

a palavra

pela sua natureza

não pode exprimir

o absoluto

 

 

daí surgem as distinções

                        que são

          direito e esquerdo

          relacionamento e dever

          discernimento e discriminação

          competição e luta

 

são as chamadas oito virtudes

 

 

além dos limites do mundo externo

o sábio reconhece que existe

mas não fala sobre o assunto

 

dentro dos limites do mundo externo

o sábio fala

mas não comenta

 

com respeito pela sapiência dos antigos

integrada no livro da primavera e do outono

que é a crónica dos antigos reis

o sábio comenta mas não interpreta

 

 

entre as distinções feitas

existem diversidades

que não podem ser feitas

entre as coisas interpretadas

existem coisas

que não podem ser decifradas

 

      como pode ser            pergunta-se

 

 

o verdadeiro sábio

guarda o conhecimento

para si

 

os homens em geral usam o seu

em argumentos com o propósito

de se convencerem uns aos outros

 

 

diz-se que aquele que argumenta o faz

porque não pode ver certas realidades

 

aqueles que disputam não vêem

 

 

 

o tao perfeito

                 não pode receber um nome

 

um argumento perfeito

                              não emprega palavras

 

quem é que conhece o argumento

que não pode ser alegado sem palavras

e o tao que não se declara como tao

 

daquele que o sabe

   pode afirmar-se

      que entrará no reino espiritual

 

    sendo preenchido sem ficar cheio

       e despejado sem ficar vazio

 

sem saber como isso terá sido feito

é a verdadeira arte de ocultar a luz

 

 

***

 

 

o homem perfeito

é um ser espiritual

 

 

mesmo que o oceano

ferva sob o sol

ele não se sente quente

 

mesmo que os

grandes rios congelem

não sente frio

 

mesmo que as montanhas se desagreguem

em consequência de raios vindos do céu

e as suas profundezas colossais se virem do avesso

como consequência de terríveis tempestades

           ele não tremerá de medo

 

subirá acima das nuvens do céu

e guiando o sol e a lua adiante

passará para além dos limites da existência mundana

 

a morte e a vida

não lhe oferecem

mais vitórias

 

a vida

e a morte

não o afectam

 

será

que se pode

                preocupar

com a distinção

                     entre ganho e perda

                                               entre o bem e o mal

 

 

***

 

 

chu chiao dirigiu-se

a chang wu tse

do seguinte modo

 

ouvi confúcio dizer

 

o verdadeiro sábio

não presta atenção

aos negócios deste mundo

 

não procura o ganho

                           nem evita as perdas

 

nada pede

            das mãos dos homens

 

não adere

            às rígidas regras de conduta

 

algumas vezes

                  diz algo sem falar

 

outras fala

             sem nada dizer

 

assim paira para além dos limites

do mundo dos homens

 

 

confúcio disse que

são fantasias vazias

 

      mas para mim

      são a personificação

      do tao mais primoroso

 

qual é a tua opinião

 

 

chang wu tse

respondeu

 

são factos que

deixarão perplexo

até o imperador amarelo

 

como o haveria de saber confúcio

 

além disso

tu és muito leviano

a tirar conclusões

 

quando vês o ovo de uma galinha

esperas ouvir o galo cantar

 

quando vês um arco

esperas ter um pombo assado

 

 

dir-te-ei algumas palavras como exemplo

e ouvi-las-ás do mesmo modo

 

como é que o sábio se senta entre o sol

e a lua e conserva nas mãos o universo

 

reúne tudo num todo harmonioso

rejeitando a confusão disto e daquilo

título e precedência

 

coisas que o homem vulgar

   cultiva cuidadosamente

      o sábio ignora-as totalmente

 

         amalgamando as disparidades

            de dez mil anos numa matéria pura

                o próprio universo conserva

                  e mistura tudo do mesmo modo

 

 

como sei que o amor à vida não é uma ilusão

 

como sei que aquele que teme a morte

não é uma criança que se perdeu no caminho

e que não sabe como voltar para casa

 

 

a senhora li chi era filha de um oficial de ai

 

    quando o duque de chin

    a quis tomar para si

    pranteou até que

    o corpete do seu vestido

    ficou encharcado de lágrimas

 

quando chegou à habitação real

partilhou o sumptuoso leito do duque

comeu finas iguarias

e lastimou-se de ter chorado

 

 

como poderei saber que o que morre

irá arrepender-se de se ter apegado à vida anterior

 

como poderei saber que os mortos

não ficarão espantados caso alguma vez voltem à vida

 

 

os que sonham com a festa

acordam para os lamentos

e para os pesares

 

os que sonham com lamentos e pesares

acordam para se reunirem

aos que vão caçar

 

enquanto sonham não sabem que estão a sonhar

 

alguns até farão interpretações do sonho que estavam a ter

 

só quando acordam

compreendem

que tiveram um sonho

 

 

pouco a pouco

   vamo-nos aproximando

      do grande despertar

         e verificamos que esta vida

            foi realmente um grande sonho

 

os tolos pensam que estão acordados

e ficam convencidos de que tudo sabem

 

que espírito estreito têm

 

      tu e confúcio são ambos sonhos

 

      e eu que afirmo que vós sois sonhos

 

      também eu não passarei de um sonho

 

é um paradoxo

 

amanhã um sábio

talvez se erga para o explicar

 

mas esse amanhã

não virá senão depois

que se tenham passado

dez mil gerações

 

contudo

talvez o encontres ao dobrar a esquina

 

 

 

supõe que discutimos

 

se tu levares a melhor

e eu não conseguir argumentos

que batam os teus

és tu necessariamente quem tem razão

e serei eu que estou errado

 

ou se eu levar a melhor na argumentação

sou eu necessariamente quem tem razão

e serás tu que estás errado

 

ou ambos teremos razão em parte

e em parte estamos errados

 

ou ambos estamos completamente certos

e completamente errados

 

tu e eu não o podemos saber

e portanto vivemos todos nas trevas

 

 

a quem chamaremos para juiz nesta questão

 

         se eu pedir a alguém

         que tenha a tua opinião

         ficará do teu lado

         e será parcial

 

que adiantará um tal juiz entre nós

 

         se eu pedir a opinião de alguém

         que tenha o meu ponto de vista

         ficará do meu lado e será parcial

 

de que nos adiantará um tal juiz

 

         se eu nomear alguém

         cuja opinião seja diferente das nossas

         ficará em situação de não poder decidir

         já que difere de ambos

 

e se eu nomear alguém

que concorde com os dois

também ficará em situação

de não poder decidir

já que concorda com ambos

 

se tu e eu e os outros homens

não podemos decidir

como podemos depender um do outro

 

as palavras dos argumentos

são todas relativas

 

 

se queremos alcançar o absoluto

necessitamos de os harmonizar

por intermédio da unidade de deus

e seguir a sua evolução natural

de modo a que possamos completar

a duração de vida que nos foi concedida

 

mas qual é a harmonia

por meio da unidade de deus

 

é isto

o certo pode não ser realmente certo

o que parece pode realmente não o ser

 

esquece o tempo

e a distinção

o certo e o errado

goza o infinito

repousa nele

 

 

***

 

 

as trevas disseram à sombra

 

tu agora estás em movimento

 

daqui a pouco ficas parada

 

ora te sentas para daqui a pouco te levantares

 

porquê toda essa indecisão

 

 

a sombra respondeu

 

talvez eu dependa de algo

que me faça fazer o que faço

e talvez essa coisa dependa

por sua vez de outra

que a obriga a fazer

o que faz

 

ou talvez a minha dependência

seja como um movimento inconsciente

 

como posso dizer porque faço uma coisa

ou porque não faço outra

 

 

***

 

 

certa vez

eu

chuang tse

sonhei que

era uma borboleta

esvoaçando

alegremente

daqui para ali

e dali para aqui

usufruindo a vida

sem saber

quem realmente era

 

de repente acordei

e ali estava eu

eu mesmo

chuang tse

 

sonhou chuang tse que era uma borboleta

ou foi a borboleta que sonhou ser chuang tse

 

deve haver alguma diferença

entre chuang tse e a borboleta

 

este é

um acontecimento de transmutação

de coisas materiais




***

 

 Versão livre dos Capítulos Interiores de Chuang Tse

 

***

 

 

 

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