ANTIPOESIA

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ANTIPOESIA

segunda-feira, 29 de maio de 2017

DESCONSTRUÇÃO VII



poucos lêem poemas 
poucos são os poemas que se lêem

           poemas extensos ninguém os lê 
       e para quê lê-los se só o autor sabe o
                que dizem quando sabe

decidi 
         desfazer 
                     os meus
                                 em pedaços
colar os
fragmentos
               de uma
                         nova existência

quem quiser se quiser cole-os reparta-os fragmente-os 
faça-se realidade na realidade que eu já não reconheço

                                  a sua
                            o seu poema
                    que sendo bom ou mau
                             não é meu
                                 é teu
como o vinho
                   o vinho
          as taças cintilantes
                    ébrias 
                 fumegantes

néctar de todas as perdições aladas
tensa mola da vontade por instantes decrépita

elegia ao vinho            ao poema orgíaco

o vinho não carece de elegias odes sextilhas quadras disparatadas
ele é o poema vermelho que fermenta o sangue do pensamento
que ilude a realidade fazendo-a ver na realidade dele própria o que a realidade é consolo de vida incerta e da morte no chão sangrento

         o vinho não se canta não se diz não se lê
                          bebe-se somente
              enquanto o poema geme dolente

ah rimbaud      possuir a verdade numa alma e num corpo
a tua visão poeta como nos é estranha como se estranha a si mesma
a glória da verdade no ponta do lápis invisível com que traçaste os teu poemas em idade incerta
tu o mais belo de todos os demónios que desertou em tempo das profecias exaladas em turbilhões de letras vivas até à agonia

                 o teu corpo não mais acordou
                           a tua alma sim
             embriagada no inferno dos iluminados

olhemos      vejamos a mesma estrela o mesmo brilho de bronze no céu harmonioso       o dia está fresco a noite fria e da vida pouco nos resta
o carrossel gira aos uivos      ah como gira e rebrilha trajado de negro
a cabeça da deusa de oiro abraçada por um miúdo que esvoaça na frescura da nortada       à volta corpos de ervas preciosas estendem os braços fingindo tocar a dança circular da ave marinha do leão de papel e do elefante de patas ao ar poluído por gritos      como um bêbedo há um jovem que volteia sobre um barco enleado nas ondas corporais da rapariga em folia
                          uma velha ri
                          um cão urina
                         numa esquina
             numa quelha dois namorados num
                    afligem-se os assistentes
                   espantam-se os passantes
                   divertem-se os que vivem
                           o senhor prior
                       de passagem sorri
            e o carrossel gira mais uma vez e outra
                   até que as moedas findem

impermanência voraz

morreu quando nasceu
             feliz

                                        alegria de noiva
            esperança de noivo
                           por casar

no rosto da tristeza que olhares não deita aos lagos verdes de algas bonançosas
                         não brilhou a lua
                    e o regato calou o som
                     das luzes em floração
as árvores milenares não o viram com a faixa a ressumar sangue
e ele nado-morto
                     o pai não viu repousar
                       com a cruz aos pés
                      e a lápide no coração
o amanhã um devaneio       o erro       a ilusão
           quem sabe se vamos existir ou não
projectos derrotados pelo acaso mortífero pela fraqueza dos membros titubeantes e subnutridos de vazia vontade

demónios uivantes do pensamento

que maior incerteza que mentira adoptada mais se adapta aos tristonhos anseios humanos
hoje não vivo amanhã viverei
sofro não sou feliz amanhã serei
        não sou rico nem famoso nem respeitado
          amanhã dormirei em colchão de oiro
                      por todos adulado
projectos raptados pela vida aos projectistas que crescem e envelhecem no engano e na visão turva de suas estreitas vistas mergulhadas em sombra de ignorância inócua e triste
o amanhã não existe
a menos que os espíritos maléficos ou caritativos inundem o velho casario da imaginação patológica  
uma mesa giratória no canto da sala água-marinha
um pássaro de plumas marfim escuta estático a voz de falso tenor do piso inferior
açaimada aos anos percorridos no breu pela velha estatueta de bronze está a boneca de trapos com o sorriso aberto à brisa que vem do rio 
a senhora idosa tão inclinada e absorta fareja a tiritar o local do crime original sem a remissão de bula expiatória por discordância com a divindade irada
a grandeza melancólica dos espíritos peregrinos
cardeques eternos      descobridores da maresia silenciosa e retráctil que assola as horas tão vastas como lendas conspícuas
os vales verdejantes 
                              enegreceram
e sobre as cem mil colinas nem uma águia real ousou voar
a bruma percorre o desfiladeiro abrasado por sôfregas labaredas 
a gare      fornos de algodres      onde sopra a brisa da memória
depois de uma semana de retiro a canícula percorre-me o corpo embevecido pela visão dos carris lustrosos
ninguém no apeadeiro      apenas o silêncio da solidão e o leve sopro da aragem nas folhas ardentes da vegetação
traves protegidas por óleo queimado gemem ao sol postado à meridiana      dezenas de vagões estacionados aguardam a carga que tarda
a minha vontade      mimosas que oscilam ao vento oscilante     partida que é chegada chegada partida     
vagabundo da vida           será esse o meu destino
                 penso nos nossos projectos
                   nas forças debilitadas
                   pelo desapontamento     
gostaria de retornar ao meu quarto longe do murmúrio da cidade
                      sou lacedemónio     
                     as luzes do mundo
                    já me não seduzem
vou e quero voltar na urgência de alma que se rasga e fragmenta
é demasiado este sofrimento
a ausência de esperma nos umbrais dos muros caiados
a vida que se consome na agonia dos destroços calados 
                  é demais a ansiedade
                      o fruto sem cor
                   das virgens ao luar
o cavador à chuva sentia nas mãos calejadas o mistério do sofrimento
nos dedos tristes de seixos rolados pulsava a aliança da desolação
sangue empedernido de séculos ferozes
o fim do dia ia tão alto que se podia adivinhar a noite e seus espectros milenares
              feitiços lacustres desenhados
                   a pinho e granito cinza
                nos corações fermentados
ninguém quer aceitar a minha liberdade
o clarão do dia na palavra do agora pertence-me
                 é esse o meu quinhão
liberdade esculpida com cinzel de prata      vestida de azul e dourado
                          sabor amargo 
          milagre da solidão em vida verdadeira
          sangue vivo na floresta do sofrimento
                e o malhadouro sem gente
inverno
homem réplica do tempo incerto como as chuvas resgatadas por fortes ventos das terras altas
um nevão amacia a pele cardada da ampulheta duplamente cónica
               os pastores tremem
               estremecem as almas húmidas
                               com pasto a nascer
                               nos corações gastos
rios saem do leito
espreguiçando-se
                               as ribeiras voam
                               nas pedras circulares
cai a névoa bonançosa
as nuvens demoram-se nos cumes
escarpas graníticas acariciadas
                mãos de mulher a afagar
                      a dureza do viver
                  a quem só resta amar
esmagam-nos
                    a vontade
dilaceram-nos
                    a persistência
      discursos dependurados em bandeiras
      poses calcadas no areão do rio poluído por
      calçadeiras metálicas
      estudados perfis de ásperas desilusões 
não há estrelas na melancolia da abóbada nem felicidade na estrada do céu
peixe doirado a habitar os dedos da cidade
milhões de anos-luz corrosivos e opacos em forma de bicicleta demarcam a invisibilidade do plausível e
                no espaço-veludo rosa-choque
               morre-nos a esperança luminosa 
                          da boca nascida

o céu brilha na parede desmaiada do pobre casebre

olho em frente

         um cão brinca com um globo de cristal
                    exaustivamente profético

o mestre da escola de porta em porta fendida ergue-se na escrivaninha do desjejum a comprimir na mão esquerda a cartilha do sono e da ausência
da obscura profundidade do abismo impenetrável irradiam ser e não-ser em perpétuo e imperecível movimento
a semente gera o girassol que gira resplandecente na floração
morto que seja outras sementes em queda virão alumiar o solo
útil como chuva em tempo de seca prolongada
       decompondo-se
              ele que ofuscou
                       prados e planícies
já em si não é mas noutro a reverdecer tenro e brando no coração da terra fértil a alegrar as nuvens de algodão doce que no céu resvalam indolentes tal como nós seres viventes como todos os entes hoje amanhã sempre presentes
           lã de carneiro que nasce e morre
                     e nova renasce
            em amável e eternal lameiro

liberdade repetida
liberto
pelas bocas fétidas dos abutres nascidos da peçonha imperial
uma vénia à infelicidade que subestima os seus adversários de raiz corre contra o vento vindo do mar desfeito em raios que as portas vedam
clarividente
               possante
                          na lentidão do último alento
famoso com fama comprada a ouro e sangue inocente do arvoredo
prestigiado com o prestígio granjeado à força de bombardas
rico em metais de escassos amores
ladrões de virtude embaçada

as dores dos risos a escarnecer a desgraça do entrudo lisonjeiro
                      o povo inerte
         desconhece nas cartas do destino
                     seu triste fado

a chuva abriu o silêncio da cidade onde a água nos fala de olhos fechados no mais negro dos despenhadeiros
uma harpa ao fundo da rua fermenta nos braços de um anjo caído com uma ferida no calcanhar
animais de cornos pontiagudos correm nos empedrados alheios à desarrumação silvestre do lugar enquanto duas mulheres sangram ferozes na porta número dezanove que tem em si a membrana de todas as essências reais do mundo esquartejado pelo marfim de todos os perigos de morte dos abismos fulcrais acotovelados de ideias gigantescas aquarteladas na proa dos assassínios vindouros
as luzes alvorecem      florescem na boca da floresta doentia do parque que escurece no brilho dos arcos empunhados por negros ancestrais
as constelações cintilam nos seus nomes espelhados na fronte rasgada pelos espinhos apodrecidos
cravam-se dedos nas carnes flácidas das ressacas ígneas    
deus exala labaredas do púlpito improvisado no número vinte e um      entretanto um candelabro apaga-se num grito de angústia existencial enquanto o brito com uma vara embebida em vinagre e chagas no corpo inteiro nos diz boa noite
a cama cauterizada sustém a visão do corpo que estremece
                e a terra gira como sempre
enquanto cinco cedros guardam a terra dos mortos        o cemitério fica a meio do caminho das duas aldeias da freguesia      os portões de ferro têm hoje um louva-a-deus por fechadura
tão belo na sua cor verde nos seus gestos piedosos
poucas são as moradas nuas        grande parte de granito cinzento        também as há de rosa e preto praticamente todas cobertas de lápides e flores artificiais        a lengalenga das inscrições tumulares      frases estereotipo do amor na morte a ocultar o ódio da vida        
depois de mortos são todos santos nas suas auréolas de lágrimas ocasionais
uns tantos jazigos      o do velho desembargador todo trabalhado e com um barrote cortado a servir de tranca à porta      um outro recentemente construído da família teixeira aguarda pacientemente pela morte de algum deles provavelmente uma táctica odoriquiana para prolongar a patética existência      a ilusão da continuidade da matéria em decomposição      americanices      casinhas de brincar aos esquifes
casa vazia hoje ocupada pela esperança      ela que me acompanhava e à tia cândida ao lume nas noites longínquas da invernia 
vejo as fotografias      leio os nomes      em mais de metade das campas corre o meu sangue ainda que em putrefacção      tenho família nas duas aldeias
rememoro as vidas os momentos as palavras as ensinanças
      o bom e o mau                 o tudo e o nada
corpos corroídos pelos exércitos de vermes da indiferença
não há matéria mesmo indigesta que os esmoreça 
um primo da cidade quando vem à aldeia vasculha as campas muda flores das ricas para as vazias      dizem que enlouqueceu      julgo que não     ele conheceu-os      pelas suas mãos faz-se a justiça aos mortos que a não tiveram em vida 
as rosas de plástico alegram aquela paisagem macabra a que falta a nova tecnologia de comunicação      redes sociais ou espíritas astrólogos e videntes dos programas bichosos das manhãs televisivas
sou da velha guarda      nada de modernices      na mente guardo as imagens no coração os afectos nos olhos as lágrimas
                         e nada de lamúrias
            morrer é ter vermes nas entranhas
                                  demónios nos olhos
                           terra nas mãos gretadas
                 nos membros ampulhetas azuis
                    um mar de espinhos no peito
                                             um leito
         um lugar de eterno descanso
corre um silêncio pela aldeia        uma brisa ligeira traz-me as horas do relógio da torre da igreja sempre oportuno
os cães já não ladram e os habitantes velhos e exaustos adormeceram há muito        passeio-me pelos luzeiros que se debruçam na varanda púrpura das nuvens deixando-me embalar pelo canto das cigarras e dos grilos        cantata minimalista dos simples a contrastar com o preciosismo de bach que ouço enquanto a insónia não mergulha nos montes        e a paz se instala no cigarro de todas as noites teimosamente sorvido
a madrugada vem medrosa e carente e um dos loucos da aldeia meu velho amigo da infância e da adolescência canta glórias e aleluias a caminho do cemitério     passa das quatro    sua hora de visita aos nossos mortos
penso na vénus de botticelli     agrada-me a presença da sua imagem sem a desejar
a ausência de anseios faz germinar o deleite da beatitude
penso        penso também se não será a paz que faz cessar os desejos        seja como for
o zé já estará a rezar no cemitério percorrendo as campas nuas e as empedradas      sortido de inscrições lágrimas e falsidades        reza aos seus mortos e aos dos outros como cava nas noites de luar os arretos deste e daquele
um destes dias irei visitar os meus mortos e seus vizinhos e hei-de lembrar-me de mim
de pequenino longe das montanhas que hoje vejo são tão poucas as lembranças      
recalquei sublimei substituí pelo vazio inócuo as memórias da cidade        
desta restou-me o rio com as suas asas de cristal erguidas na barra      a mesma fome e sede de mar      terras do além-oceano com as suas árvores gigantes pássaros exóticos no sorriso amplo de longínquos habitantes coloridos
neste vale que agora se corrompe por míseras trinta moedas vagueava o rapazito de calções à chuva ao vento ao sol e aquelas dores de cabeça horríveis e constantes como tições acesos no crânio      a habituação a algumas provações e sofrimentos por amor ao calvário      alegria dos caminhos sinuosos de pinheirais dos vinhedos em flor das cestas de vime no ribeiro a caçar cabeçudos
na cidade a fronte baixa voltada para a calçada calcária numa angústia profunda e aquela tristeza que só a tem o sol poente
cresci entre a serra e o mar numa vida vária        ergui castelos ao luar      segui o rastro das estrelas inocente tal rei mago em demanda do salvador        amei pobres e tresloucados os que sofrem isentos de pecado      fugi dos desalmados das crianças que são cruéis e dos adultos desleais como cardeiros e silvados 
            amei e fui amado e odiado
                       vivia o dia
                      das plantas
                     dos animais
                o agora que nascia
                  a cada segundo
              numa emoção tão forte
                         que deixava vencida toda a morte
                               porque morria a cada instante 
                                                e a cada momento
                                     renascia sempre um novo
                                                   josé maria
                         ámen 
o sol ia varrendo as nuvens do céu em harmonia com as flores coloridas do pasto verde ladeado por rochedos de musgo amarelo-esverdeado
      duas ou três árvores sem pensar na morte
                          lançaram raízes
                no velho coração do bosque

um inferno lá fora atrás das roseiras dissipa a dívida externa em festas e convulsões 
o céu cristalino observa o pavimento sangrante dos palácios moribundos de feridas acres arrastadas pelo volume da corrente a engolir homens bichos e barcos hidráulicos 
a rua suja da cidade com os pulmões a estourar recolheu ao sono pantanoso de dilacerante pesadelo
ali estavam colunas em vigília observando a perpétua e patética diversão das esculturas roídas pela noite e pelo abismo
          escuma do tempo
as estradas do pensamento percorridas
demasiado vistas escondem no pó a sabedoria de monstruosas crianças
ouve camarada      este é o caminho dos mortais na poeira do espaço negro e do tempo incólume à penetração de súbitas visões
na acrópole entretanto discute-se a alma trivial das formas de neve a cobrir o mármore da multidão a que não pertencem
                            meu pai e minha mãe
        um álbum de fotografias 
                                           a preto e branco
eu tinha os cabelos loiros encaracolados
meu pai ainda jovem
                     cotovelo apoiado
                     na perna suspensa em muro caiado
                     o rosto apoiado nos longos dedos
                     príncipe encantado
minha mãe
                     magra loira linda
                     beleza profunda
                     em longo vestido cintado
                     sorriso do mundo o mais belo
                           e agora
                              eu
                         deus meu
              neste sufoco
              neste aperto
              envelheço
           a branco e preto
                e morro
nesta hora de vindima do fruto espezinhado no grande lagar de granito
os mesmos pés que a vida pisa pisam agora os cachos com carinho
e tu minha tia minha mãe que da terra cuidaste como quem de criança cuida às agruras do tempo sujeita tão velhinha
                            ausente 
                     desta tua criação
               e às vezes sinto saudades
                     dos dias felizes
                corridos à tona de água
quando as sinto fico triste como criança sem ninguém para brincar
mas quando as não sinto mergulho em ácida melancolia em mundo que enfada e mata
ainda existem ilhas        ilhas onde não há gente

ilhas despovoadas                  selvagens
civilizadas 
               pelo vento quente de áfrica

cai a folha 
               amarela
um casal de pombos
               no parque onde nascem crianças
intenso calor
                  à beira do lago
onde um cão
                  lava o focinho negro

              por baixo da ponte em ruínas
                      patos e pombos
                à sombra uns dos outros

                  cheiro de estio no ar
                     ofegante suado
                  por regas perfumado  

trave mestra                pedra angular
o carro
           cai na chuva
                             desfeito
abre-se o clarão
                       do dia em dor

a mala                                  levanta a voz

pássaro
      a vomitar fumaça
                 na gente que passa

                     o céu varrido
            por raparigas atormentadas
                        de desejo

um jovem moço
           arqueiro
         da virtude

a rua nua

um brasão

um coração

                           imaginação
                        no saco de lixo
                         ao amanhecer

                              a poesia
                         canta o silêncio
                           em si bemol

nos poemas
              répteis
                    um homem falido

                         um carteiro
                         sem cartas
                            de amor

mendigo
           sem lenço
                         sem lençol

uma manga

                         alma pura
                          dobrada
                 no livro do horizonte
partira sem pegadas        as estrelas por companheiras à luz da vela vermelha
não suportava mais a música entristecida dos encontros secretos ao arrepio solar
um rio eterno de safiras e esmeraldas haveria de existir em qualquer lugar
as flores da amendoeira da berma inóspita eram o seu mais íntimo presságio
                   nunca mais iria voltar
uma coluna de fumo negro passeia-se na serra do pisco
             as labaredas lambem crepitantes
                       o solo ressequido 
                  tal chicote de escravos
de brasas aceso
                           pedras
                               giestas
                                   pinheirais
                     tudo foi varrido
                 pela boca do inferno
                 num beijo vermelho
                                               convexo
vivem
nos sentidos
                   coloridos
                   por mágoas
                   clandestinas
um oceano de sensações
e projectos não palpáveis
cativam os seios  cheios
                                  de cachopas
                                   seborreicas
                              da avenida cinzenta
no jardim arredio de amianto enfloram as sombras da virgindade amortalhada
alguém canta fado corrido            desgraçado
alguém joga meia dúzia de tostões uivantes ao infortúnio
                          ah a felicidade
                        nunca descoberta
                           nunca perdida
as árvores pedem
a chuva do passado remoto

                        o laço do tempo
                            desfez-se –
                         fera de sombrio
burgo        serenos graciosos fibras chamejantes de espírito de marfim a navegar sem confiança na terra descuidada
árvores imploram a chuva do futuro em solene esquivez de amor vegetal
indómito
              pó
                   ruído de janela
               sussurro de cortinas
                         cruas
                       escritas 
                   em versos nus
                  de livros antigos
árvores pedem e não sabem que a chuva taciturna só desce à savana em terror mudo de mofo
                         na boca 
                       esmaecida
                      pelas folhas
                        do tabaco
 a minha canção                pobre canto
de quem ontem nasceu
                                  na rua da escravidão
           a sonhar realeza
                                   imensa potestade
                      de vitória
incessante entre mim e a desventura árida de meia-noite cavada na voz das árvores

                    lâmpadas de açafrão
                 a cintilarem ao quotidiano
                           da saudade
desviando os olhos                 suspirando breve
                     no âmago dos ossos
                          descarnados
nadei nas tamareiras defuntas
                 como crianças convencidas
                 de miragem num deserto
                    de trevas encarnadas
tu que a terra deixaste                   diz-me
sem rodeios
                    onde repouso eu
nos séculos de espaços amplos e tempos encobertos
                       eu que nasci
                         que morri
ao fumar um cigarro verde
na cadeira rubra do café 
                           bisbilhotice
                 inundada de luz eléctrica
cortinados verdes        cadeirões azuis        entroncamento         um jovem militar        um cigarro escondido
                       nas horas infindáveis
                        da viagem nocturna
           nas janelas vê-se de dentro para dentro
o interior
passam luzes no exterior        brancas        amarelas
                          luzes anónimas
                como os corpos sonolentos
                    sentados nos assentos

a vontade era um tédio amarelo a repousar nos degraus à sombra da faia
na aldeia morrera uma criança já velha em corpo amado corpo contorcido num leito sem sonhos
tudo findara no rumor dos novos ruídos

o fogo ergue-se no terreiro
          pássaros minados de piolhos
          tomam assento nas bancas
                de frente para o coreto
                povoado de bandeiras de papel
grossos bigodes
em saxofones doirados
            raparigas aguardam ansiosas
         a chegada do esquelético conjunto
             do toque aprazível ao bailar
uma lebre parou no caminho bem na frente do jipe inocente no escuro da madrugada
          manteve-se imóvel como numa gravura
                     a serra ganhou
                contornos de alegria
       nas almas tisnadas dos pastores 

                      chegámos à aldeia
                     o sino toca a finados
                        a morte voltou

o marido da defunta de azul marinho e preto tem os olhos inundados de resignação
falámos da existência do sofrimento da melancolia do futuro mergulhados em meditação ocasional de quem só pensa no decesso quando acontece e a nós nos toca

                         pobres mortais

uma ave canta no amanhecer nascido das raízes da velha árvore ressequida e nua
há cinco outonos ali fez o pica-pau seu ninho resguardado do vento forte dos temporais do norte das noites frias da floresta chuvosa e uivante
   sem saber
        que o destino do seu abrigo
                era o corte incompassivo

o vento ruge nos pinheiros anões

          sibilante na urze rasteira

o rebanho junta-se a poente da casa da floresta

um cão encrespado fareja a rajada solitária

o tecto do mundo enegrece súbito

grossas gotas de água tombam das encostas do céu

a chuva aumenta enchendo de água as depressões dos carreiros desertos

            o pastor abriga-se cobrindo-se
       de telhas partidas pelo gelo e murmura 
em esquiva linguagem o desconforto da humidade

        no princípio sobreveio violenta tempestade
                         o corvo protestou
o sexo feminino foi esculpido num pedaço de terra regado com granito a esvoaçar nas ilhas desertas
filha de homem cedo descobriu o segredo da grande serpente
caprichoso refugiou-se nas grutas de chamas
sem fumo no céu enegrecido o resto do planeta não era corpóreo 
a carne da terra nos ossos rochosos com o sangue a escorrer nas mais perfeitas gotas de orvalho envolveu-se com os sete elementos da cidade banhada por esmeraldas pássaros de fogo
aprendeu a pronunciar o nome a dar as boas-vindas na nudez revelada entre os dedos estanhados com os braços abertos à divina ausência de altiva beleza escutou os auspícios ao despontar do sol faminto nas asas da fénix
                              guerra
                             estupro
                              morte
como haveria de cantar a sua ternura       como dizer que da porta de sua boca arroxeada apenas exalaria verdade que a sua alma seria o cofre-forte de todos os segredos
           não voltaria a casa com o coração destroçado
           pousaria no ramo da pomba azul a contar horas de sol na claridade da noite
                              sorrindo 
a lua cintilou durante o dia exausto esmaltando o rosto da muralha disfarçada de musgo verde-ácido 
a maciez do ar propagava-se nos túneis submersos de monstros e dragões povoados
ali o capim era mais alto ocultando as ameixas serôdias que ao acaso cobriam as nuvens subterrâneas perfumadas de jasmim
                           caem ameixas
                  no cesto rombo do veneno
o inimigo de satanás aliado penetrou oculto na casa da escuridão onde cada pássaro nocturno encarnava a paixão segundo o jade polido do ventre baixo das moças em flor
                        em dó menor
dança de palavras              compasso quaternário
                         as palavras
                          les mots
- como eu sei francês -
                 são angélicas borboletas
                 aeroplanos descendentes
que morrem às mãos 
do reino
carregado de ferros
galopantes e
afiados nas montadas
dos cruzados
                   fosforescentes
sílabas de paraísos perdidos a planar no último dos azuis
carbonizados
estranha surpresa de barco no mar revoltoso
                          em cúpula
                        de alabastro
                       desaparecido
são palavras

               nuvens
                          almofadas

                                 fecundas na rápida

                                                      loucura
                         da distância

                         bruxuleante

falsas e incertas

                               que por nós
                                                passam
                                     no ecrã gigante
                                          da memória

                        promessas
               a calcorrear as estradas
                     do impossível

daquela rocha viva tudo víamos
o que se pode ver e o que não se podendo se imagina
vinhedos corriam nas janelas com as folhas vigilantes ao furto de seu fruto
viriam as vindimas com homens cheios de sarro pela calada da aurora
lâmina afiada a violar o teu tesouro de tantas e tantas almas arredondadas
viriam para as acarretar 
                   espezinhar com violência
                                             animalesca
embriagados pelo desejo
        torpe vício
                       de quem sem sede
                      de seu pomo se sacia

                    há dias que a chuva
                           não pára – 
                       parede de água 

na fonte
        velhas encharcadas
                       enchem os cântaros
enquanto uma rapariga
        lava no tanque
                       por telheiro abrigada

sentia falta da flor no meio do relvado quebrado em minúsculas partículas verdes
as nuvens corriam com seus dedos de sombra no dia em que os mortos deveriam regressar armados de malas desfeitas em pedaços de cartão amarelo com as mangas arregaçadas soluçando palavras a arder em desejo
                         desejo morto ao luar através das árvores despidas como rameiras 
um clarão entre trovões estremece as pérolas de orvalho
                    a lua gela ao cair do dia
                      fria solenemente fria
           agora demorada no silêncio das nuvens
as cigarras não cantam
por entre os lírios amarrados à terra branca
enquanto
nos meus olhos crepitam lágrimas
a escorrer nas folhas mortas
                   o gesto violado
                         ingénuo
                    corpo exilado
                         da vida
dias das estações
      à venda
                     os palácios incendiados
                        pelo aborrecimento
sem que o murmúrio
da bruma vermelha
aconchegasse a noite
de fábulas e oceanos
                              por descobrir
será que podes quanto queres e o que queres se deixa poder ou o que se pode se deixa querer
talvez seja assim                              talvez não
se o que se quer não se pode e o que se pode não se quer se se quer o que se quer e o que se pode não se quer que se queira o que eu quiser para que ninguém
             seja sofrer

um degrau no tapete desce por entre luzes de castiçais e incenso
energia que desperta os corpos imensos da barata universalidade
                     da rua de santa bárbara
havia morte na cadência dos passos descendentes
olhares vagos
                                                 luzidios
                                        tristes
                       indiferentes
     à visão do cemitério
     penetrado por ciprestes
a terra prateada vestida
                                  de mármore
                                  de granito polido
                                                 resplandecia
e na morte o ar respirava à fé
                                        da ressurreição
                    pobre gente
a colina pintada de bafo quente amorna o casario branco irremediavelmente disperso
não há vivalma nas ruas apertadas por pedras de granito cinzelado
a pequena taberna desbotada por estores amarelecidos agita-se num único movimento do tasqueiro no tamborilar dos dedos balcão sujo de preguiça
sem freguês a coisa manqueja
                                          tonéis cheios 
                                          cubas turvas
                                          vasilhame empoeirado
                     no ócio da crise
  o taberneiro dormita no regaço da aldeia

decidi pintar a minha casa de amarelo-mostarda
por toda a parte vejo o que nunca antes tinha visto
casas amarelas                             dezenas
                centenas de casas amarelas
                                 desisto
mas a ti velha oliveira
retorcida enrugada
de braços abertos ao destino
amo-te
por meu falecido pai plantada também por ele amada
e tu meu filho quando eu fechar os olhos nessa noite de breu ama-a como teu avô a amou ama-a como eu
a corola aberta        a árvore florida        as vozes frescas das ceifeiras no espelho de água lisa
os sorrisos louros nos rostos avermelhados do sempre-feminino
ali junto à fonte onde repousa a brisa matinal brinca o mesmo menino de sempre
espera paciente o amanhecer desfolhado da razão para depois adormecer        os dedos gelam soterrados nas cobertas devoradas pela noite      escreve sobre o obscurantismo      espinhosa tarefa de quem calcorreia os dias na sombra das janelas abertas à superstição dos rostos afogueados pela palidez da alma        altera o rumo no turbilhão das ideias que despontam nas floreiras várias e diz às vestes envelhecidas pela náusea um adeus definhado e amarelecido
nesta morada temporária secaram todos os detalhes ânsias e virtudes      dispersaram-se os momentos no vómito bilioso das íngremes e letais circunstâncias
os cães ladram às pedras mais escuras
uma samarra desce a calçada romana
um velho tão velho que parece uma sotaina com pele de raposa ao pescoço
o gelo poisa lentamente nas pedras emolduradas por terra estéril
a água dos animais gela no pátio
não está só
                algo o acompanha
                uma sombra
                um espectro
                sei lá          sei lá
olhei-os como sempre os olhei vendo-os como são e como serei
                o lar onde não deverias estar
                olhos de água pura a cintilar
o forte odor a morte abarca o ar leve e a respiração translúcida das paredes cabisbaixas
há mesas soturnas banhadas de idosos a reter as memórias do passado e os acenos amplos dos espíritos mortiços que descobriram o sorriso descampado dos aposentos velados
                todos sabem que vão morrer
                                           ou quase todos 
e que tu também partirás
mas sorriem-te nos teus 98 anos
                                              e tu sorris
                                              e vives
                                              na paz da canção
                                              dos beijos
                                              dos votos
                                              de longa vida
                  de um dia a dia feliz 
és a mais velha de todos os que aguardam pacientemente a derradeira jornada
eu o mais novo                             canto e beijo-te
peço-te em silêncio que vivas
                                          assim
                                          sorridente
coração inocente de criança a extinguir-se placidamente
             dá-me mais dois dos teus anos
              depois pedir-te-ei outros dois
                     e outros tantos
                 não partas fica comigo
sonhemos ambos com os vinhedos a florescer com a brisa nos pinheirais a reverdecer com o lagar vivo no outono
              vinho a ferver na alma
    e com as framboesas 
        que crescem no pátio
             sombreadas pelas laranjeiras
               sonhemos ambos
             nós e mais ninguém
            juntos e em segredo
           neste teu dia de anos
           que nunca irás morrer
ou que se a morte te chamar
ao temível e doce degredo
me chame a mim também
a brevidade da vida estampada nos ponteiros do relógio     
o sentimento lúgubre da aproximação da morte nos passos do coveiro
cedros que se achegam ao olhar turvo da idade      
um diário a arruinar-se na noite profunda

           um diário é como a filosofia 
         subsiste porque a morte existe

perdurará cavalgando-a
subsistirá nela     não  na morte iminente 
a que irrompe num lampejo na sequência dos dias sobranceados pelo enfado 
mas a que nasce do apelo inaudível do vazio existencial
um diário em fragmentos é um verdadeiro aborrecimento que ninguém se dá ao transtorno de ler
gazeta de promiscuidade intelectual 
                 questão de pouca monta
poema de circunstância dito em conjuntura garrida e domingueira
simbolismo     realismo     surrealismo     promessas por decifrar 
sentido aparente     palavras improfícuas     masturbações
- para não dizer punhetas - 
           mentais     
cuas africanas atoladas na selva impermeável
clamores obstinados de régulos apeados 
algo que pouco importa ao amontoado impiedoso da ralé
populacho entorpecido pela propaganda de canapés ortopédicos
abdico de o escrever como delineado
que nele fiquem as estilhas     apenas as lascas
  os estilhaços pertencem-nos rasgam-nos a carne integram a nossa interioridade mais profunda sangram-nos as emoções
mergulham no abismo da alma decrépita 
ferrugem obsoleta dos dias
                  não são passíveis de censura
somos nós os delinquentes e os julgadores dos delitos da vida
sem que nada haja para julgar censurar ou expurgar

são tão-somente o que são e o que é nada mais é para além do seu ser da sua íntima essência
         apenas ápices     como um ornato 
     que se usa em dia de gozo de romagem
    diário da hipocrisia circunscrito ao poema

           amálgama intrincada de letras

                seja esse o nosso lema
             nosso desgostoso emblema
               má prosa      pior poesia

um estranho ritmo governava-o desde a juventude
ainda tenra criancinha já os vermes das máculas vermelhas dos mortos o perseguiam
no quintal da casa de granito as laranjeiras em flor e o banco onde se sentara arfando quando ainda cria nas recompensas do além
repousando na primavera tardia
aprendeu a linguagem subversiva das noites de insónia
nos fogosos cavalos pardos da aurora
no longínquo fluxo e refluxo das águas que junto à costa alcantilada tremiam de frio

tinha a natural dificuldade em esquecer a manhã gloriosa que passara no ribeiro onde as flores tombadas viviam flutuando
tecera a fogo a canção das loucuras naquele terrífico espectáculo das noites escuras que tremulavam na eira à sombra da via láctea 
ancestral laje granítica vibrada a violentos golpes de mangual 
o circo     ah o circo das terras do norte
saltimbancos coloridos em país estranho com a marca do poder de deus nas testas luzidias dos tormentos
estranhas eram as tatuagens nos calcanhares
na azáfama da vida subiam verdes ramos de amores ao coração do velho carvalho
suspiros     gemidos     langores

tempo afinal 
             preso por fino fio de orvalho



***

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