ANTIPOESIA

ANTIPOESIA
ANTIPOESIA

domingo, 26 de junho de 2016

PEQUENOS POEMAS VI



***




renuncio a todos os prazeres

           festas e romarias
ao conhecimento        ao conforto
ao amor        ao mundo
                 aos sentidos e à razão
mas à paz não




***





tão longe quanto a de deus     mais longínqua

tão perfeita quanto a do criador     mais ultimada     tanto que outra como ela não há


daí ser poeta

um péssimo bardo             é certo
                         mas poeta
                 diga-se o que se disser




***





com a mão de palma branca dizes que não

com o corpo a doirar mestiço dizes que sim


com o rosto oculto nem sim nem não



            assim como assim

            dizes ao sim que não
            e ao não que sim




***





nada há que o mar a si não chame

            coisas e gente
    tanto é o choro        ranger de dentes        ais
    consome-as sedente
    ou rejeita-as nos areais




*** 





o tempo continua cinzento



há canaviais na margem da linha 



as nuvens no horizonte exibem formas vivas

vinhedos      no prado alguns animais
os dias de seca já finaram


e há o ribeiro de águas sujas      os afrouxamentos      a ponte negra da pampilhosa



tardo em chegar a casa





***





por detrás da casa brilha a lua

   ah o luar     eterno elixir dos amantes


      noite densa e adocicada por sombras vivas



          o tempo está quente



          junto ao cipreste de antigamente

                      desnudos
        lianas invisíveis aos olhos do mundo
           aprendemos o tempo da paixão




***





   um profeta

      não nasce profeta      ah a terra-de-ninguém


   pela quietude      pelo não-querer      pelo vazio

   fabrica a sua palavra
                       na certeza do além




***





atravessámos juntos as imensas florestas 

tocámos as estrelas com nossos dedos
embainhámos as espadas
diluímos os desejos no pavimento rochoso
rasgámos todas as folhas de livros sagrados 
semeados em solo estéril
bebemos de todas as águas
de todos os venenos
e
recolhemos o fruto no ventre rasgado do universo




***





rosas do encanto     sono primaveril em planície de flores onde entoa a voz dos rochedos       

          encruzilhada de virgens


   uma jovem que se transforma em deusa

      um tigre atravessado por flecha envenenada
            vencida é a lonjura


   resplendor sagrado da harmonia angelical

      no murmúrio dos meus dedos




***





um coração sangra

no peito da floresta virgem –


   assassinos em viagem





***





imagina hoje

  que o mundo é nosso
   porque vivemos nas 
    chagas do crucificado


anda      vamos cantar carícias

          de amargo sabor
   comungar no mais secreto dos sonos
           a pulsar no limiar da alma




***





 o amor batera-lhe à porta

     teria de a abrir
      trilhar um caminho
       perseguir a via
        onde a dor
    sempre seria maior
    que a maior alegria




***





   os girassóis nos campos estrelados oferecem-se aos olhos da trepadeira da janela do caminho



   o poente desce à terra humedecida pelo sémen pacificador da primavera



   os mesmos rostos na estrada que não principia nem acaba



        intacta a náusea alastra pela planície





***





acautelai-vos ninfas das florestas que não seja sátiro vosso amante      esse que só em parte homem é e na parte que mais tem tem o que david não tem       rasgando-vos fadas sem asas   leves delicadas   o que tanto desejo e me não pode ser negado nem estar por besta sujo ou por sátiro sujado





***





um cão dança –

em voltas sucessivas
intenta alcançar
seu próprio rabo –
endiabrado




***





         incendiaram-se as nuvens

   a ilha das máscaras de pedra afoga-se no arquipélago proscrito
   os teus braços abriram-se ao voo que irrompe do corpo num gesto de beleza melancólico
   a infância são apenas lembranças 
          pretensiosas e derradeiras
   luz a descer dos céus naufragados




***





a neve vai lentamente derretendo

enquanto os ribeiros da montanha
     vão alegremente cantando




***





  ouço o teu canto na vastidão das nuvens

    a paz mais amorosa da mais preciosa pérola
            gémea
      mas tenho no coração o medo do último dos condenados no corredor solitário do amor




***





o que está perto nem sempre está descoberto



   uma ave marítima cruza o tejo pensando que dá a volta ao mundo



   um ancião passeia-se na praceta em círculos



          para quê ir mais longe 

          quando o mundo nos foge




***





é na separação que o amor se recria –

            explosão de rosas
no descampado solitário do coração




***






      a miguel angelo



a corpo que se quer perfeito

por mão de homem esculpido


por complexo 

por opção de sexo


certo e sabido

algo notável lhe há-de faltar




***





não digas que me amas      de que serve amar o que o que já não tem febre      dor      sentimento

não      não digas mais que me queres
deixa que a morte corra em mim como tempestade de asas brancas no destino cruel das carnes putrefactas




***





 os elmos dos guerreiros

          devastados
   testemunho a reconciliação


 os sepulcros dos vivos

        ardem fiéis
  aos pulsos do homem
       amordaçado


        não acredito nos deuses

    histórias a medo trespassadas


        não posso

        serei traição      
                        mas cobarde não




***





há uma canção de liberdade nos nossos corpos

o prazer do coração floresce na noite


            a liberdade termina

            sempre ao alvorecer
       e transforma-se em cárcere




***





no sofá verde da parede amarela brincais ao amor pela primeira vez        jovens e belas experimentais o toque subtil

donzelas em erecção      uma mão na rosa outra no botão




***





      sou ou não religioso em tudo o que faço e intento fazer

      quando acordo e me deito com ou sem fé e esperança se não te vejo nem te quero ver ou vejo sem que o saiba nem saiba o que é o saber
      sou ou não religioso quando de desejo peco ou da caridade me despeço e ao mundo tanto aborreço
      sou ou não religioso quando mais do que a ti a mim tanto me amo




***





nesta viagem

que silêncio


por companhia

ninguém




***





falo com as mãos        unhas que são garras soletram os ossos dos afogados

com os meus dentes lavro a terra que arde nas profundezas da alma
na orla dos rios recolho flautas      túneis dos canaviais alados
na berma dos caminhos orvalhados o degelo das lágrimas da orfandade




***





as aves pertencem

ao espaço
voam nas almas
apaixonadas
que sombreiam a terra
e o azul do mar




***





não sabia

- ainda não o sei –
se te havia de conhecer ou não
o conhecimento traz no hálito os perigos do acaso


o desenho azul da intuição sobrevoou a mente



este tédio que já não admite paixões

dorme solitário no canto mais secreto da minha alma 




***  





  vieste há hora marcada 

    vieste com a tua sombra         mais
      muito mais profunda que as tuas formas


poderia ser o teu corpo a minha última morada





***





  insondável primavera      lua nova

   os ciprestes roçam o céu


    uma viúva no campo florido

     o peito arquejante no véu oloroso


os choupos do rio movem-se ao vento

ordenados          manancial de ilusões
    nas arestas do punho vigoroso




***





enquanto houver um

homem com fome
um injustiçado
um degredado
não dormirei 
- dizia o ministro
enquanto deitado
no leito nauseabundo
de asquerosa concubina




***





  ao anoitecer

   uma estrada rumo ao mar
    um rio na gruta da montanha
     a explosão da fúria da carne


     ao anoitecer

  quando o desejo ensandece 




***





corpos há que em alma pura moldados transcendem o tempo-espaço

assim queria eu o teu        universo-orgasmo infinito             abraço de nuvem absoluto


                 a vaguear nesse instante 

                      de eterno prazer
                       por deus tocado




***





o velho contemplava

cabisbaixo e ensimesmado
o lameiro semeado
com aquela certeza
que só a sabedoria tem –


não mais veria germinar o pão





***





leio algumas passagens de leibniz

        eis o advogado de deus 


   se eu tivesse fé     dele precisaria e só dele

   queimaria os livros sagrados as representações de santos e os templos


        não viveria em mim     viveria nele



           não seria eu     seria ele



          morreria por não morrer

        sem ego para sempre viver




***





  a fama das tuas formas aneladas ao mundo

  escondem nesse olhar expressiva melancolia
  duramente repetida no dia-a-dia
e aquele tédio assustador  de quem por tudo ter atingido
           bela e apetecida se sente vazia


                      taedium vitae

                     naomi campbell
                      taedium vitae




***





de pé

ao leme do meu
espírito
entendi
como única verdade –


o meu desejo por ti é uma falsidade





***





o céu esteve cheio de nuvens      à tarde o sol apareceu queimando tudo à sua volta      ocupei-a a tratar da casa de inverno      granito e pinho      lenha para a lareira para as noites longas e melodiosas da invernia aconchegante      o frio dói e ama      amante perfeito do espírito silente em leito de serra neve e vento





***





  uma pele de carnívoro no chão brilhante

    um dente de leopardo na estante
      e tu bacante olhas-te num sorriso
        de velho espelho
          enquanto aguardas ansiosa
            o costumeiro amante




***





      factos 

há gente em quem não se pode confiar        ervas daninhas que minam a ceara      vendedores de afectos      a voz melosa na saliva envenenada        niilistas arrebatados pelo seu próprio voo      circuncisos da verdade afogados pelo cinismo em águas que tudo lavam menos as línguas pelo esterco afiadas
   gente cobarde
      que mata pela palavra e não à espada


                seta alojada no ventre do diabo





***





um sábio louco

escreveu na porta da ermida –
deus vê tudo mas 
não condena ninguém 




***





                     doces olhos

doce negritude        a tua pele é uma túnica de pedra escura        o teu corpo pináculo de catedral        teus seios o portal do desejo vivo e quente        tua boca gerada da matéria mais pura
alimento que verto no sal do meu ventre
em ti penso e eternamente me contento
      num presente que não é tempo
                   doce negritude




***





a aurora dos meus dias começa ao cair da noite

quando na aldeia deserta o mundo se silencia
na lareira que me aquece e a alma me alumia




***





 intactos      silentes      pacificados

  as portas cerradas
   os corpos de si ausentes
    só as almas estão presentes
     no desatino da noite de longos dedos
      é esse afinal o destino que nos é negado
                 amar como ninguém ama
                sem carne        em espírito
                        gratuitamente




***





está um frio terrível

no café entra a velha romena      vende revistas       pede esmola
dou-lhe uma moeda contrariado      lembra-me que é natal
- é natale siô –
a dona oferece-lhe uma sopa      é natal      uma sopa e um pão
não sou tão bom quanto penso        quanto pareço
                 e a vida não tem sentido
                     apetece-me chorar




***





flor que se abre no monte branco como quem se perde nas vielas da cidade de altas paredes recortadas na abóbada dos dias

pedras pardas do muro da prisão em altivez silenciosa clamam pelo prazer dos mortos
passos antigos dos gemidos e ais dormem o último sono às mãos de um bordel de lata onde jazem os vultos de mulheres para sempre perdidas




***





pudera eu transformar-me em cisne branco e seria zeus

o deus sedutor de todas as rainhas da terra
jorrando eternamente o meu amor em vossas soberbas delícias




***





  caem as folhas

   no rosal
    as andorinhas
     em árvores de lágrimas
      acolhem o sudário
       bordado em manhã antiga


       o povo do vale

       já pouco vale




***





a chuva que deveria ter caído e não caiu

é verde na face        amarelo-pálido nos dedos


na sacristia as labregas

dos lameiros lacrimosos
oh santos pastores das encostas
noivos eternos das borregas




***





de ventre em ventre nasceu em busca  de uma forma

as pedras dos ícones dos altares da parede do oratório não são mais adoradas
   repousam da adulação
         deixai-as repousar




***





esta alegria 

que agora
me invade tão bruscamente
nasceu
da mais severa
melancolia




***





os meus vícios

uma oração por cada um


a palavra de deus é gratuita

mas dura o tempo de um relâmpago
recolhido nos olhares assustados
de monges e pastores da negritude


há uma cadela na rua com cio

ervas que crescem na língua madura
e os cães amontoam-se à coberta da lua fria




***





estamos juntos        velhos amigos

contamos mortos no chafariz enquanto a noite cai nos nossos ombros descaídos
a aldeia deserta        no cemitério respira-se lume
há um cadáver de pé
enquanto a luz gelada da rua
se mistura com o nosso queixume




***





   sátiro que te escondes no odor do pinho e da oliveira

   que ostentas o membro erecto e na luxúria do sexo descoberto
   nunca hás-de amar esse espírito natural que faz viver os entes mais perfeitos de lagos rios bosques e mar
      aparta-te meio-homem meio-animal
        entrega-me esse corpo belo
          a quem mais não queres do que mal




***





a neve chegou 

de mansinho
trazendo consigo
no coração ardente
a nostalgia
das noites sintéticas




***





é dentro de mim

  que te vejo
    oiço e sinto


     plenitude de um beijo escondido

 a clamar no planalto com as entranhas em lágrimas
            fim do deserto e do degelo




***





se viver uma outra vida hoje e aqui

terei a carne na carne divina e a alegria na alegria da chuva de uma tarde fria


ó nostalgia que a inspiração ata na fúria da tormenta e os bandos de flores desata na luz lânguida das cores





***





                   este remorso imenso

                  sem princípio nem fim
                   libera-me do castigo 




***





a realidade        demasiado tarde

uma estrela no caminho apaga o luar
alegria imaginária dos cravos
naquele jardim oculto de açucenas




***





terra nua      febril      em imóvel oração

a dor é o pão de cada dia        do destino
lá fora está frio        há raiva e amor no campo limpo e nos espíritos por limpar alarga-se o passo
nos soluços da visitação chovem tições de vinho
aves do paraíso      graça do rio dourado nas asas do meu caminho




***





cavalos brancos 

erguem-se no descampado onde
cavaleiros envoltos em poeira
respiram o ar sufocante
dos antepassados 
mortos em combate




***





o passeio branco de geada

desliza sereno sob os teu pés


o firmamento foi devorado pelos angustiados

o seu olhar surdo e inumano debruça-se na terra árida


o horizonte é um homem com duas lágrimas

fome insaciável do deus vivo
evasão da imortalidade nos lábios rosados do transfigurado




***





incendeia-se o sol nas ervas que sangram naquela zona sombria onde a carne se decompõe e o espírito com suas garras se sustém com a nobreza e altivez da agonia dos séculos inundados pelas  encardidas chuvas de outono





***





   sussurram as folhas nas horas amotinadas



   no monte branco a carne da virgem sem mastro rastejava ofegante

   sonho incerto de vaso santo penetrado por misterioso florescer


      onde haveria de esconder o juvenil tesoiro

   quando as moscas zunem sobre a penugem claramente visível


      soam três badaladas na pradaria desolada



   um rio orgulhoso despedaça-se nos rochedos da nudez



      melífluo aguaceiro de fêmeas verdejantes





***





um veleiro aporta vindo do porvir



amargurado olho-o do meu dois mastros

com as velas recolhidas


            velho para partir





***





meu corpo no teu

teu cheiro no meu


espasmos consecutivos

na carne que renasce


beleza do mundo

nesta tarde reencarnada




***





lâminas que cortam o gelo de uma vida consumida

o muro caído        a casa em ruínas
os filhos que a morte comeu
a velha mulher que se pranteia no regaço do passado miserável
e a cotovia que apaga o rancor das manhãs


canto sonhado na triste alegria do despertar





***





antes réu que juiz

espinho que rosa
tempestade que bonança


em cada noite de insónia

um último poema      digo
nem sequer sou poeta
a noite arde
na janela aberta




***





   heras no jardim envolviam os narcisos      séculos medidos pelo respeitável carvalho velho

   no banco do lago a angústia das vestes apodrecidas na espera da nau comida pelo mar         viver sombrio da amada
   o rio das ausências junto à mansão agora em ruínas
   o salão vazio e o quarto desmembrado pela insónia centenária
   na cadeira de estilo bárbaro o corpete de mil e uma volúpias
   naquele breve olhar vimos nítidos os fantasmas de séculos
          o desalento e padecimento eternos




***





   a fome do teu corpo das tuas faces rosadas a cor alegre de teus vestidos fazem-me aguardar a hora incerta

   ver-te sem que te fale e plasmar na memória a tua imagem é quanto basta aos meus sentidos 
                 mesmo tão envelhecidos 




***





um peixe encarnado



a velocidade da respiração

dos amantes nos nervos ensanguentados
dos escandinavos


havia gelo e enxofre

nas margens do rio
e um orgulhoso silêncio
nas flores da pele




***





pernas nas minhas entrelaçadas

de braço na cintura pergunto-te com o olhar – 
estamos nus             vamos amar




***





            descia os degraus do templo

            mais triste do que nunca –
              deus não estava lá




***





o quarto inundara-se de luar      a noite não adormecia      pingos de chuva escorriam lânguidos      nas vidraças das janelas



os galhos da árvore grande do jardim beijavam os beirados dos olhos abertos e exauridos



            a luz ténue do astro nocturno

             era o amor da terra escura




***





vivos que morrem        mortos que se vingam nos sentimentos de culpa do passado

aves que cruzam os mares que planam nas altas montanhas e a cidade empedernida louca e entristecida chora-os na resignação terrestre
nos escombros mesquinhos
de palavras a sangue arroteadas
      tédio interminável da melancolia




***





na janela o galo

de penas prateadas
entrançadas como heras
sonhava inutilmente
com o homem novo
quando o granizo
estrondosamente
reflectiu a sua violência
nas vidraças assombradas




***





um homem com a bagagem às costas



o trem tarda                   que importa



      a vida real não marca horas

      não se atrasa nem adianta




***





  doçura de teus lábios no meu sexo

   dedos na escuridão do teu fruto


    um ai que se solta no silêncio



     como vieste te foste – 

                     tudo findou




***





parto

      uma nova sorte
                    o coração oprimido


            não sei se o tempo amadureceu

              ou se sou eu que tenho medo




***





na avenida

árvores de lábios rasgados
o bom vento lateja nos primeiros raios
nos pulsos cortados das vísceras massacradas pelo destino
o infinito nada acorda do seu sono exemplar        ergue-se na sua morada
pés em terra nunca antes pisada
o mistério da vida na cobiça da sua sombra esquecida




***





esta angústia de

não poder estar só
silente
na mente que se masturba
masturba e
novamente se masturba
como se fora adolescente




***





  franzina nudez

    de costas voltadas


      pela parede 

        nua amparada
      reluz na alvorada


    do sexo

  hoje negado




***





vi-te naquele dia chuvoso sabendo quem eras sem que o parecesses

sem que te tivesse visto nesta ou noutras ilusórias vidas
senti o teu gosto os estilhaços de tua alma o meigo oiro dos cabelos soltos na mais subtil das aragens e a sedução de tristes olhos inundados de profundas razões
              desde logo li o nosso destino




***





desceram do trem com aquele ar impertinente de quem não sabe o que faz

tiraram fotografias que irão apagar as falsas delícias da ignorância
           assim se foram como vieram




***





  arestas doiradas das armas no campo das crianças mortas

  adaga com que matas a inocência que a ti sobe
  olho-te        vejo-me
  sem serenidade nem esperança
  floresta desertificada por línguas de fogo bifurcadas
  sílabas de fumo nas ramagens secas espoliadas da seiva secular 
   nem os cabelos como lírios de prata te alcançam




***





um tiro apenas

fez de ti um herói
rodas de flores
lápides rosadas
cruzes        credo        cruzadas
um amor desfeito
mãos arroxeadas
poisadas no peito




***





tu a rainha luminosa      túnica colada ao corpo

                 perfeito rosto de rosa


ameixas caem ao solo         tua beleza não

             pele diáfana da natureza


toco-te levemente

        um gemido ergue-se na noite
               delícia que não é de gente


amor que em minhas mãos por horas deus te deu e tão bem soubeste divinizar



            só o divino vive eternamente





***





posso aguardar pela paz

na noite da quinta deserta


a chuva canta 

penso em deus
enquanto ela parte




***





o ar acendeu-se        chispas por  todo o lado

o céu escureceu além das claras janelas
de novo
a minha alma solitária prepara a partida
                  um novo passo


      a cada partida

renasce o coração de aço




***





na viagem do teu corpo

na voragem do desejo
não peço que me peças nem tu
pediste que te pedisse
a voz liberta dos sentidos
anseio resolvido e sedento
no grito louco e místico
do delírio que morde voraz
as palavras que consumimos




***





o corpo amanhece trémulo

renascido para a dor e para o luto encarcerado no olvido


a montanha mais alta a meus pés

repartida como o pão doado aos pobres na serenidade luminosa da antiliberdade


lisboa chora os anos passados        hoje carrasco amanhã vítima



o rio enegreceu ao rufar da cobiça





***





conhecer-te não quero

nem o teu corpo desejo


quero a tua imagem

esguia   perfeita
no fundo dos meus olhos




***





a minha alma faz o caminho pedregoso para o mosteiro     por quantos dias   pergunto-me     

junto ao mar num portão púrpura do cais está atracado o veleiro nórdico de escotilhas luzentes
jardins da terra e jardins do oceano     a mesma solidão pacificadora a mesma brisa sussurrante 
cálida é a bênção dos deuses derramada sobre os que enveredam pela contemplação do infinito 
percorrendo com imaginação delirante os confins do que não tem existência




***





o tempo 

deixa os seus passos
na areia vermelha
do desespero
escurece os que padecem
extermina os receosos
confunde os que se lamentam
assombra os medrosos
mata os que amam




***





as mãos não cedem ao silêncio

que se faz vício nos corpos apertados
filtrando o odor
de um amor desconhecido e puro
como saliva e suor de anjos




***





este momento de rendição enobrece-me



entrego a minha carne às famélicas águias     sou seu precioso alimento seu prazer seu orgasmo selvático no membro extático



para cada ocasião uma oração

não evoco


o anelo evola-se para ressurgir na tarde ociosa

a noite cai perfumando os ares
a mente esvazia-se
a agonia vai-se
por agora
ela fica




***





o tempo mágico dos corpos floridos

a partida que se deseja na irresolução


minha velhinha mãe

sozinha


tarda o encontro

onde estará o que em mim vive


terei de deixar tudo

espalhado no caminho


irei por dias

tu estás para além dos teus templos


também estás no coração

de minha amorosa mãe




***





difíceis e morosos são 

os momentos em que
secretamente te aguardo




***





acendem-se lâmpadas nas folhas de trevo     cavaleiros preparam as montadas     a guerra

retinir crescente do orvalho escutado à janela pelos rostos de crianças melancólicas


        anseia-se sempre por outro amor

               incomparável e único
            sol a beijar manhã plana


logo que o mundo finde

guiados pelas estrelas nos promontórios dos mistérios
            aprenderemos a amar




***





que o ouro se cale

e a inocência regresse nos
meios-dias de esperança


nos mitos antigos

ressoa a noite no fumo
do cigarro que se apaga




***





à cegueira da culpa

me confesso


do sonho fantástico

do sangue da terra
me despeço


aqui teimosamente

sem gente nem crente
no outono da dor
desfaleço




***





    teu corpo nu no meu leito

    o repouso de uma mão no peito redondo
    palavras soltas na insónia nascente
    o amor não dorme na
    ausência que consente o medo




***





tétricos e eternos horrores     provações deste mundo nas caves encarvoadas que suspiram lágrimas

farrapo velho a vaguear nos penhascos do descuido
palavras solitárias das montanhas nevadas 
        tão fúteis            tão calmas
                    tão calvas


     nada és para além da lembrança





***





  em redes de esmeralda escrevi as minhas dúvidas

            as noites continuam a ser longas
   acenderei as velas aos primeiros sinais da madrugada
     a lua ergue-se na montanha        sonho com os raios cristalinos em dança frenética no lagoacho
        e a dança melodiosa da velha truta na erva-da-fome




***





o meio-dia da vida oculta-se no que está abscôndito



revela-te à minha visão espírito     contigo desfarei o tempo     

      o véu do templo irá romper-se em estilhas 


fundeio com ferro bifurcado nas minhas entranhas fechando os olhos à paisagem ruinosamente abatida por garras de homens



      no ventre vazio sinto a alma viver



mas se vens não te vejo      se te vais não entendo         

                        nada compreendo


            a ignorância é a minha essência





***






é tempo de visita

o vulto da morte amainou a tempestade mítica do fim dos tempos


   nada para a deter

        posso morrer nos símbolos da noite




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esta necessidade de solidão e de olhar para dentro transformou-se numa obsessão



busco uma nação distante no que de mais perto atinjo

         ermo é o lugar onde mais ninguém cabe


templo cingido por fino véu     na noite escura do mundo em hesitação



                      peregrino do além

                        mendigo do céu




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a mesma oração de sempre –

estou aqui
simplesmente aqui
à espera de nada
a querer nada




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