anda cambaleia comigo sombra amiga leva-me contigo perfuma-me de nardo o
caminho alaga-me a alma de confianças e desvelos vê meus olhos lacrimejantes minhas mãos
brancas e glaciais os lábios floridos
errático e sofrido estou sou
cinza mágoa e pó oh clarões
calados oh trovões que caís aos pés da minha verdura e da miragem de tantas benquerenças
fulgores
de falsas dores airosa cintura de
menina tão fina e quente
espera
que
a tarde é oiro e o tempo filigrana
espera
afinal
para além de mim já ninguém te ama
sou um vendedor de
tempo
seus
lagalhés-engravatados
suas
varinas de
hemiciclo
seus
abades do
armistício
e
defunteiros-dos-coitados
zés-ninguém
façamos uma pausa
breve como convém
vasta-quanto-baste
a lembrança dos
dias úteis
dissolve-se no
martírio dos fins de tarde
pintados por
clarões flutuantes
nos desfiladeiros da esperança
nada é insubstituível nem os deuses inefáveis e os anjos translúcidos
há uma ferida de assombro em cada
passo
uma pedra tumular para a urgência
um enfado ansioso na moldura espinhosa do
crepúsculo
as pétalas caem uma a uma cobrindo
o solo de novas águas
longe a terra-de-ninguém
um coração estreitado nas mãos
crispadas apoia-se no relicário
o cálix das antigas eras abre-se ao terno
repouso dos frutos silvestres
a força do corpo perde-se no
sono fatal da essência matinal
e
no olivedo esmagado pelo peso amadurecido e pelo altar definitivamente
abandonado
morrem as últimas andorinhas
na
aleivosia dos dias no rumorejo
daquele mirar infinito
havia
sido belo e elegante ladeado por
seres exuberantes trazia consigo a
poesia das mais enternecidas auroras e dos arcanos do ocaso
na
magia das noites o sorriso discreto antojava às mais esplêndidas mulheres
agora
poucos o ouviam e os luzeiros olhavam-no de soslaio como se estivesse irreparavelmente
contaminado nada lembrava as estupendas
viagens na terra-da-volúpia
as
luzes dos palcos rastearam na madrugada vexadas pelos passos melancólicos e
desalentados dos primeiros operários e das primeiras dactilógrafas modorra
do dia-a-dia
pujantes
eram as súplicas que pronunciavam em sânscrito as medidas exactas da imolação
assim
seja disse o cabelo ainda farto mas branco banhava
seus pensamentos febris
com
firmeza apoiou-se no balcão cravejado de corpos estranhos
alguém
lhe perguntou quantos anos
talvez
cinco ou oito afáveis os risos dos
simples
algum
silêncio
emudecimento
e
uma última explicação
são
os que me restam de vida
talvez
sim talvez não
sua
última palavra
um
sopro indiferença
carência
de companhia do desejo
nos
limites da arte furibunda
falecimento
derradeiro ao anoitecer
porque não
a absoluta
razão
dos jumentos licenciados
dos poderes cariados
das matilhas políticas insalubres
dos populares rebanhos disciplinados
do
tempo que se esvai dos dedos deformados dos indoutos e do
conhecimento-sem-sabedoria
artrite
reumatoide da cultura fibromialgia
dos vade-mécuns
badamecos
de longo curso
está chegado o tempo do ócio
às abas vulvares e rociadas
do pantanal remoto
os infiéis sufocam
nos rebentos odiosos
do cipreste morto
a lua cheia convidativa
adivinha os teus anseios
reflectidos em pálidas
nuvens
tão próximas e distantes
o
objecto em si
o erro da consciência
o
tempo sempre o tempo
que
passa
que não passa
que escasseia
que concebe
que
bebe e é bebido
que
morre e mata
ilógico
impiedoso
sempre a puta da consciência
e das coisas que nela
navegam
no cornudo tempo psicológico
coisas
que são e não são coisas
se
a minha consciência é realmente consciência
ou
se as coisas que o não são o são
e há coisas sem consciência
talvez
consciência
sem coisas
as
adoráveis percepções amarrotadas dos sentidos pesarosos e escandalizados
suave milagre
a
terra gira amalucada da mesma forma para os embriagados do que para os
cosmógrafos de sua majestade daí
nasce toda a ciência obsoleta estribada nas leis arrogantes das cátedras
embrutecidas
desde
criança que na minha falsa timidez vi nas palavras dos tratados que à força me
impingiam a magna parvoíce das deliciosas ambições dos eruditos brutos embevecidos por discursos dignos
dos mais extraviados sofistas
hoje
poucos são os que lembram esses mestres barulhentos e ocos como tambores em dia
de comício
a
cada quatro anos nova arruada para um mesmo povo que sonha com amores de
encantar e adormece no colo dos demónios-sempiternos
saudemos
o grunhido do envelhecimento e a morte das instituições dos nobres-sem-tostão dos estadistas da argumentação falaciosa dos
trabalhadores e das promessas ignóbeis dos sindicatos e corporações
sordícia que o tempo corrói
cidade
dos cem portões e mil torreões
mil
eram os alabardeiros
nos semideiros sonolentos estacara
a cavalaria
nela
os desafortunados soldados famintos sorriam-se dos estorvos da estratégia
contando as horas nos dedos vacilantes
da
sabedoria
sem
que soubessem
que
a sua única fé
era
a morte
o
remordimento do final do dia
a
torrente plana do recreio da vida
consciência
de pesadas vestes
o
ameaço circunspecto de um cerceio no estuário do denodo
crime
imperfeito de pestes ancestrais
heróis-do-descanso como é fácil e pouco exigente dar voz
de comando no areal ó
generais-do-arneiro almirantes-do-ribeiro-manso
ide
naveguem
sempre para sul
busquem e
rebusquem
novas terras
negras-altezas
mulheres
monstros
semi-deuses
diamantes e
rubis
riquezas
barca
barinel e caravela
aproai-vos ao
tempo
bolinas
imperfeitas
singraduras
silenciosas
abatimentos
fatais
o maior perigo do
mar é a terra
ide
pobres
presidiários
condenados
mendigos
aventureiros
e
trouxeram nos porões sujos e fedidos
escravos
escravas
crianças
satisfazendo
libidinosos anseios
no
convés
especiarias
oiro e jóias
sândalo
história de
porcos-negreiros
escândalo
gente
tão forte com os fracos e fraca com os fortes
tão temente a deus como ao diabo
gemeu e rangeu os dentes
na hora da morte
enquanto
os heróis
jazem
pó
nos panteões
nos mosteiros
a
vida contínua
no fenecimento eterno
o
deslumbre
do despojado
um
único passo
em leve movimento
pássaros
voando em círculos
na cegueira
do
vento
glória na terra
à madeira sepulcral
ao vinho nupcial
o
esquecimento das notas brancas do alaúde
e um corpo pisado pela
chama
canibalesca
quando o dia termina
os corações
regressam
aos covis
extenuados
desesperados
aguardando
a irrespirável ordem de despejo dos sentimentos
certeza única do rescaldo
das marés-vivas de setembro
as
folhas caem hoje das árvores da alameda com a violência do vento de sudoeste
caem na minha consciência com todas
as dúvidas de todas as ciências
merda para as ciências
para os afiliados das academias
capitulam como se não tombassem e o
vento de nordeste amainasse ou não existisse no quotidiano filamentoso das
massas anónimas
uma mulher
tresmalhada
um padre
por benzer
uma loja
da mão esquerda
contos velhos
por cicatrizar
no canavial
queloidiano
a loucura
abraça
a cidade
o repelente
de insectos
debruça-se
à janela
o crepúsculo
tarda
nos olhos
tristes
dos transeuntes
as coisas
nomeiam-se
transitórias
na desordem
do quebranto
só o rio
desagua
no mar
a
terra abraçada por vaticinadores
desvelos
em tempo de outono
impaciência
vertida por deuses embriagadores estremecidos em ferais a engrandecer as almas
mortas
campanários
velhos gerados nas águas cristalinas das fontes secas
antediziam
a dádiva do fim da brecha entre céu e terra
do
meu quarto viam-se os jardins anediados pelas névoas matinais
trespassando
incólumes as entranhas das flores
bem
perto o ribeiro murmura embalado por estilhaços de sol
nele
corre o pretérito incendido pela música cega composta pelo gotear surdo das
cascatas
e
a dor da remigração caiada por agonias
um poeta bondoso
sentou-se
na minha mesa em convulsiva e falsa reconciliação com a profissão
falou
de amor da revolução dos oprimidos do partido das massas da força do povo da virtude
do vício da verdade e da mentira
de tudo o que cresce
do que morre
das leis do acaso
dos seus livros-sátiras
e suas consequências
bebeu o café que paguei
os poetas-profissionais andam sempre à
míngua de óbolos
tamborilou com os dedos na toalha
desgastada pelo lodaçal das palavras sujas de anos
cerimonioso
pediu-me um cigarro
e emudeceu na nuvem
do fumo pecaminoso
estupidificado e
temente como alma-viva constrangida ao crematório
estou
aqui por estar
nestas páginas
grotescas
doentias
sem fotos
dos
antepassados
putrefeitos
espelham
a transpiração da noite acesa
nos
feitos dos que partiram e que
tiveram nomes
cartões bancários
carros velozes
mulheres
alguns filhos
um
círculo do nada ao nada
bastardos
as
mãos acordaram
subitamente
sustendo
a curva da estrada
no
reflexo labiríntico
da
malícia
estar por estar
o poeta
o trem
as letras
rasuradas
pelos trilhos
o poeta
a
gare
a pulsação da chuva
perpendicular ao
regresso
na vertigem
medonha
da escuridão divina
apenas estar
sem ser
sem-tempo
ouvir e olhar como quem vê e olha
entrámos
no túnel
parecia
não ter fim
o
cheiro a carvão queimado
sonho afogueado e feliz da puerícia
onde
a palavra agora se confundia com saudade
e a arraiada com eternidade
o
sidónio caminhava lentamente na calçada romana a vida consumira-o
a morte do único filho entregara-o
à sua própria morte
tinha sempre os olhos rasos de água plácida lagoa desabitada
o sidónio existe digo eu
existe porque eu existo
quando
ele morrer eu deixarei de existir
se
eu morrer primeiro será ele que perderá a sua triste existência
o mundo
será um amontoado
de destroços
sem lembranças
mas
a realidade verdadeira ou falsa existe
e eu
vindo
sem saber donde
ouço o eco de longínqua galáxia
no
vazio cósmico
dos
destroços de vidas passadas
e
no ar
o cheiro
adocicado da seiva do martírio inglório
lugar
distante onde os cristais brilham no topo dos mastros amarelados
afasta este cálice de mim este é um país de escombros
múmias e palhaços à presidência
pierrôs e arlequins ao governo
histriões e parlapatões ao
parlamento
vendilhões de tradições
esquerdas e direitas e nauseabundas
arqueações
tratados convenções e falsas
intenções
mutilados
mentais transfiguram amor em ódio e pedem-me que os aceite no meu regaço
turba
de corsários reinventai-vos forjai-vos
bebedores-de-cataménio apresentai-vos
aos rebanhos de gado miúdo com nova catadura convencei-os de que não cagais
merdosos
fraldiqueiros pajens de vossas ventosidades
vendedores
de quimeras flatulosas bolsas
fartas de ignomínia insensíveis
aos
soluços
biliosos nas veredas e às tenebrosas alcovas onde as brisas se embebem de
penúria e
as
flores silvestres se refugiam nas pedras roladas do muro derribado
em
todas as palmas das mãos abertas ao firmamento com cravos ferruginosos expostos
à adversidade estulta ilusão dos
desvalidos que vos alimentam
imemorial
voo da prostração da fome cercada por um mundo gerado pelo desdém do
esquecimento
nona hora na quinta
debaixo deste céu
todos os homens são
iguais
vencer
os poderes da natureza da
impermanência oculta na sua concha dourada
esta
é a terra das armadilhas
dos
génios orgulhosos talentos do
rocambole de terrail
servos
da devoção e da inacção
um
anjo desamarra-se do mais profundo dos sorvedouros e esfrega os olhos na face
poenta da claridade
paciência diz-nos
perseverança bisa
esperança insurge-se
caridade desespera
compaixão enfurece-se
tudo
com feridas abertas infectas e
virulentas
voz
que clama e ruge num planeta em pranto
ora
estou para além
da ilusão
do mundo
de mim
por segundos
toco o real
suma heresia
de um crepúsculo
final
o
norte
da infância
partir
para o norte
definitivamente
decididamente
irreversivelmente
assassinámos
a realidade dos montes desertos
giesteiras
do nada contorcem-se ao som dos raios de sol
na
encosta os povoados são bandos de aves em devaneio
e
a estação deserta apenas uma passagem negra e húmida na voz do silêncio
crisálida
ilusória de alma tumultuosa
contemplada
num fio de prata a emergir das montanhas
a
vereda vazia da brisa mental
a
morte derramada nas águas verdes do lagoacho
da
erva-da-fome
que
venha o manto róseo da solidão e da enarmonia
contraponto
do fatal homicídio do pensamento
e
do tempo
o
sul
da adolescência
tardia
mar
mulheres
sexo
e rum
para amar
onde
o mênstruo das águas
circula
serenamente
música
divinizada
dos
passos da morte enleante
meus amigos golfinhos do espichel
olhos nas lágrimas do oceano arado por mágoas e alegrias infindáveis
hoje digo-lhes definitivamente adeus não nos
tornaremos a ver amigos como tantos outros nascidos nas derrotas dos navios mercantis nas
jornadas costeiras nos portos atlânticos
e mediterrânicos e nos bares dos cais das amarrações
acidentais como vós criaturas marinhas que ides continuar a vossa dança noutras vantes
na graça dos cânticos faustosos erguidos ao
paredão das vagas
vagueio
pelo terraço
vejo-os
no reflexo da barra
no
assombramento dos velames espectrais
as estrelas
entravam
pela frincha
do través
na serenidade
da noite
o mar a sul
jazigo de naufragantes
dos erros de rumo e estima
vítimas dos rituais macabros de torrentes balsâmicas
devotava-se descontínuo aos surtos lunares
párpado cerrado ao destino colorido de
insustentável penar
e
dos gestos das tormentas numa alma seca de amores
a despedida é uma parte de nós que se arreda
é um amor que se dá sem se dar
um dom sem palavras ou gemidos
um padecer que não nos basta
no infeliz apartamento do mar
qual
a menor distância
a
maior separação
a
mais pequena ambição
a
maior paz
linha
recta
ou
curva
elíptica
às
de espadas no tempo que passa
às
de copas nas pernas virgens do desejo
brota a
túlipa-negra
da rua escura
nada há sem ela
que
me importa se os carris estão fixos na sua trajectória e as estradas delineadas
por montes e vales e se cada cidade do mundo tem uma estrela que cai sobre ela
à hora certa norteando a rota do mareante sem tino se o teu jovem rosto é o sossego
insistente desta tarde epidérmica em que as abadias envelhecidas desagravam a
soledade da derradeira rosa no cálice derramado se o novíssimo cárcere sangrante de
neblina púrpura está vazio e manso sem o menor estrépito da ampulheta
fundamento
dos elementos
verticais
das
sombras enviesadas das patas da existência
no firmamento
o tempo
jaze
numa translucidez
concreta
e num
equilíbrio
couraçado
por
relâmpagos
que regressam
em cada ensejo
à fonte modelo
da inocência
que invejo
na
alma desvendada
pelos dedos
da morte
branqueada
no coração
das aves
que
aos primeiros
alvores
perfumaram
o céu
com vozes
lustrosas
para
além das montanhas ressequidas de longas rugas a dança circular das estrias
das
nuvens esventradas por cimitarras malsãs
das
cidades incendiadas por archeiros inoportunos
o
silêncio aborta nas vísceras do desalento
o
feto apodrece no ventre nocturno da sinagoga alcoolizada
o
nascituro sucumbe às mãos da impiedade do sol que se põe
as
ruas estão de luto vazias timoratas e entontecidas a mesquita desprezada
em
cada esquina a semente escarlate da discórdia
em
cada porta um símbolo execrável desenhado a sangue novo contrastando com a
falsa religiosidade da cristandade
nau
que se embebe nas suas próprias asas
proa
virada às vagas quentes do invejável cantar pelágico
o
través cercado das mais violentas blasfémias
um
mar de todas-as-dores tingido de vermelho-vivo
trágico-cómico
e
sem que se veja
há
algo que percorre o tempo
corroendo-o
traça
que devora lentamente a catedral do acaso
ninguém
escolhe a alma visceral ou a dádiva de um nascimento desapropriado
os
passos contados ao peso e com o gume acerado da velha respiração arquejante
onde
o amor se apaga e o mar se encapela
medito
na lei que desconheço
aves
silvestres sobrevoam a noite
o
sono morreu nos portais da angústia
nada de novo
no tudo-visto
a
árvore da vida entoa seus cânticos fúnebres
lamentações
da irmandade dos seios com as ancas sustidas entre muros do rio calmo
folhas
asfixiadas pelos ventos mutantes
ápices
que consomem os frutos ainda verdes e a palha seca da seara por ceifar
os
leitos de amor desfeitos cumprem a profecia
de
idosas ânsias coroadas de espinhos taciturnos e neutrais
virtuosa
arbitragem das linguagens ulceradas
sepulcros
fermentados pela ambição
demais
visto
ao fim da tarde
a
luz desceu magnífica
sobre
os meus ombros
o tempo escasseia
ergui os olhos
fingindo pensar
com a gravidade
de uma súplica
tão artesanal
como a paixão
o embrião da
solidão
no
prado a égua agitava-se a cada respiração
calcando
desdenhosa a erva do templo
invadido
por uma multidão de crentes minúsculos
insignificantes
uma cigarra
não páres de cantar
amiga
vem ver o meu
pensamento
a ressumar amarguras
na
planura os lábios vegetais as asas
atrozes da luxúria
sombras que se
iluminam
na sonoridade
do impossível
perfeito
estou
no campo é natural que existam
formigas num percurso incompreensível
um cão ladra ao longe enquanto alguns pássaros vão preenchendo a
paisagem
um cão
um latido
um vagido
um verso lido
sem arte sem ti
sem a pontuação dos teus seios
as
formigas são milhares num carreiro que parece evitar-me
umas
vão outras retornam tocando-se amorosamente em que estarão a pensar
eu
penso nos meus mortos
sentado
no milenar banco de pedra da quinta apuro a visão o olfacto e a audição
de
quando em vez ouve-se uma rã enquanto duas vacas pastam na quietude da encosta
a noite
debruça-se
no orvalho
um
corpo ascende à janela dos fundos
é bela
sonho
que oculta devaneio
deixo de a ver
leio nas formas apagadas
de permeio
a essência do desejo
lâmina temporária
de humana crueldade
a
minha tristeza que não é mais do que uma plangência sem causa deve ser idêntica ao insulamento do
colossal aranhiço que deambula na banheira
ainda
não me decidi a aniquilá-lo não é
este o seu tempo diz o eclesiastes digo
eu justificando o sumo da misericórdia
não
desejo ou se desejo finjo não desejar tomar banho não me apetece nada trotear a buena-dicha
dormir
sem sonhos tão-somente
tão-sem-tempo
o
peso das revelações
é sempre um fragmento
da
melancolia
abatimento
que não cala
o corpo dolorido pelo medo cinzento
humilhado pelo desconcerto
mudável da
esfera
toldada de um qualquer lugar feliz
o amor e seu
horizonte
de utopia e
boqueirões
estava presente no
rumorejo
da noite e na
blandícia
erma enquanto
lá fora o rafeiro
ladrava
às ramagens e
rameiras
com a ternura
de quem se amplia
e porfia na
capitulação do espaço
é triste quando os
nossos olhos
já não vêem
a alegria
esplêndida
do doirar do dia
o desassossego da
dança
frenética de
uma tarde ventosa
ou a paisagem
revestida a anjos
no voo em fuga
das mulheres nuas
as ruas
cantam
sobrepostas
o burburinho
do retorno
à mesma
existência
opressiva
sem rasto
das horas
de metal
poisadas
na transparência
do cimo
das árvores
em penitência
quando
era petiz flutuava no ribeiro alheio ao perigo e penetrava a realidade com a
claridade simples dos santos e inocentes
nesse tempo de paz
bastava-me
consumia as
estações gloriosas
o tempo discreto
das amoras
sem confidentes
e
havia na aldeia um triste homem
tinha
nos olhos
a
inquietude do tempo
procriado
por gerações
de
inúteis
seus
ombros
desconheciam
a amplitude
da
sensualidade
e
o odor táctil das chamas oblíquas
que
convergem
na
fissura de todas as escuridões
trazia
a bagagem
às
costas
o
mundo apagara-se
nas
espáduas
escavadas
pelo
declínio entrançado
do
escurecer
num
lugar tão distante
de
andrómeda
onde
se haviam urdido
todos
os futuros
e
aberto
todos
os covais
agora
estava junto de si
como
albatroz só
no
grande mar oceano
adormeceu
isento
de
revelações sob a
ramagem
de um ulmo
tendo
por cabeceira
os
reflexos do nojo
eis
que a claridade surgiu
fastienta escorria pela forte e farta cabeleira
de deus
prostrando-se
aos objectos deteriorados pela maresia das memórias
uma
melodia
derramava
um som
impuro enarmónico
nas
veias do muro
da
casa deserta
quis
escutar
mas estava surdo
quis
falar
mas estava mudo
aquela amaurose que nem o mais genuíno
dos concertos concerta
estamos
juntos nos meus pensamentos
ébrios voláteis ternos e desnecessários
eu e eu
em
criança quando chovia abrigava-me na igreja da aldeia e rezava trinta
padre-nossos e cinquenta ave-marias pelas almas do purgatório
achava
como quem não acha nada e não tem nada para achar ou que achar que as beatas
eram santas mulheres e os padres santos homens mas não
comiam-se mutuamente sabe
deus só visto porque contado ninguém
acredita enquanto soletravam credos
em latim
ah
portugal dos enganos e dos bastardos dos falsários e iletrados
na
minha virgindade corpórea e intrépida inocência espiritual vivia a escuridão
masturbatória das noites-sem-fim
em desvirtude boca cerrada esgaravatava para aromatizar os pérfidos
pensamentos julgando-me o maior dos pecadores o merecedor das penas eternas
pareciam-me
felizes as pedras as árvores os rios e as nuvens sem desejos ou instintos
lamparinas
alumiavam-nos as silhuetas nos fins de tarde ao som das novenas ou das missas
de sétimo dia
em
latim
sempre em latim
como
convinha a quem nem sabia ler
as
beatas adoravam todo aquele magnificat e outros prazeres nupciais
decadentes foda-santa aspergida a
água benta conação borrifada por
sacrossanto-esperma
não
havia rata que resistisse ao encanto de um pau-santo e entre paters e avés iam nascendo uns
tantos
enquanto
os chavelhudos-domingueiros tiravam ao senhor abade respeitosamente o chapéu
estarão suas
santas-mulheres no céu
afinal era obra tão
necessária ao povoamento
envelhecer
faz-se num grande silêncio
nascer
e morrer a cada instante
saber
estar desacompanhado empoleirar-se
no trampolim pendente dos acontecimentos
sem criar raízes no tempo
levantar
esquecer
renascer
no
parapeito
da
impermanência
sem
direcção
filosofia
ou
ciência
ser
o que não tem nome
tocar
as vestes da vida com as mãos dormentes
o
nada que é tudo
soberano e
adocicado
pelo
amor gratuito
nas alegrias
nas feridas
profundas
da infelicidade
bendito
o que está em todos os lugares e em nenhum
enquanto a vida vai respirando a
poeira que se acumula no fluir das horas
o sino
aquele som
inconfundível das horas
envio-te uma
mensagem nas asas do vento
já não és aquela
jovem terna
viçosa como o
jasmim da floreira de pedra
do jardim
desocupado e escaldante
és mais uma no
tempo de verão
que flutuou nas
águas redondas
do dulçor de meus
dedos
e agora
sem amante que te
contemple
a eterna ausente
um
abraço
voltei
a ver-te como te vi
na
primeira vez
desabituara-me
agora
um outro céu alberga o alento
ninguém
sabe
que
mentimos
a
nós
e
omitimos
aos
outros
suspensos
no prodígio de um simples olhar
na
tarde o enlaço
um
beijo fugidio
e
um novo adeus
quantas vezes quis dizer que amava
levantar a voz ao céu surdo
ter na alma as pupilas das nuvens
e nas mãos o sacrário salgado dos despenhadeiros
falemos então digamos as palavras frenéticas da borrasca
o que nos é proibido
a verdade cai como mortos no outono e as lágrimas das crianças com fome
corpos estendidos no areal sem fim
cercada por bruma laçada converte-se a
uma qualquer religião mente e minto
vamos diz o amor é apenas instinto
uma desculpa para estar vivo
visitei-a
na mesma rua de sempre
junto ao mar
depois de longa
viagem
percorria-a um hálito de
tristeza
a certeza do fim
estava doente
os
ossos iluminados
a carne em
sombras
dá-me a tua
mão disse-lhe
sabes que vamos morrer
morremos
sempre
nas ruínas do prazer
não chores
afinal a morte na
orla da praia deserta
deixa nas covas do
areal nossas dores
não
chores
vá
dá-me
tua mão
como é cruel o
tempo
sou
o que te espera sem esperar
o
que julga ser a tristeza natural
que
nada busca nem quer buscar
que
sempre aceita por bem o mal
que
acontece e que o não magoa
o
que lhe parece que chamam dor
que
vem e vai como a ave que voa
e
mais não é do que de alguém favor
sou
o habitante lunar
o
monstro voador
o
senhor do mar
apenas
mais um sonhador
que
nada tem para dar
nem
ninguém para amar
e nessa suprema liberdade
sem ser e nada ter
feito nada e
verdade
poderei morrer
sem a crueldade do
tempo
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