ANTIPOESIA

ANTIPOESIA
ANTIPOESIA

terça-feira, 3 de novembro de 2015

CANTO II - A CRUELDADE DO TEMPO



anda   cambaleia comigo sombra amiga   leva-me contigo perfuma-me de nardo o caminho alaga-me a alma de confianças e desvelos      vê meus olhos lacrimejantes minhas mãos brancas e glaciais os lábios floridos        errático e sofrido estou      sou cinza mágoa e pó        oh clarões calados oh trovões que caís aos pés da minha verdura e da miragem de tantas benquerenças
fulgores de falsas dores        airosa cintura de menina       tão fina e quente       
espera
que a tarde é oiro e o tempo filigrana
espera
afinal para além de mim já ninguém te ama


sou um vendedor de tempo

seus
lagalhés-engravatados
suas
varinas de hemiciclo
seus
abades do armistício
e
defunteiros-dos-coitados
zés-ninguém


                    façamos uma pausa
                     breve como convém
                     vasta-quanto-baste

a lembrança dos dias úteis
dissolve-se no martírio dos fins de tarde
pintados por clarões flutuantes
              

             nos desfiladeiros da esperança

       nada é insubstituível      nem os deuses inefáveis e os anjos translúcidos

             há uma ferida de assombro em cada passo
                    uma pedra tumular para a urgência
       um enfado ansioso na moldura espinhosa do crepúsculo

             as pétalas caem uma a uma cobrindo o solo de novas águas

                    longe a terra-de-ninguém

             um coração estreitado nas mãos crispadas apoia-se no relicário
       o cálix das antigas eras abre-se ao terno repouso dos frutos silvestres
                    a força do corpo perde-se no sono fatal da essência matinal
e no olivedo esmagado pelo peso amadurecido e pelo altar definitivamente abandonado

             morrem as últimas andorinhas

na aleivosia dos dias      no rumorejo daquele mirar infinito


havia sido belo e elegante      ladeado por seres exuberantes      trazia consigo a poesia das mais enternecidas auroras e dos arcanos do ocaso
na magia das noites o sorriso discreto antojava às mais esplêndidas mulheres
agora poucos o ouviam e os luzeiros olhavam-no de soslaio como se estivesse irreparavelmente contaminado        nada lembrava as estupendas viagens na terra-da-volúpia     
as luzes dos palcos rastearam na madrugada vexadas pelos passos melancólicos e desalentados dos primeiros operários e das primeiras dactilógrafas         modorra do dia-a-dia
pujantes eram as súplicas que pronunciavam em sânscrito as medidas exactas da imolação     
assim seja      disse        o cabelo ainda farto mas branco banhava seus pensamentos febris
com firmeza apoiou-se no balcão cravejado de corpos estranhos
alguém lhe perguntou      quantos anos
talvez cinco ou oito        afáveis os risos dos simples
algum silêncio


emudecimento


e uma última explicação
são os que me restam de vida
talvez sim             talvez  não


sua última palavra
um sopro      indiferença
carência de companhia do desejo
nos limites da arte furibunda
falecimento derradeiro ao anoitecer       


                    porque não
                                     a absoluta
                                                      razão

       dos jumentos licenciados

       dos poderes cariados

       das matilhas políticas insalubres

       dos populares rebanhos disciplinados

do tempo que se esvai dos dedos deformados dos indoutos e do conhecimento-sem-sabedoria
artrite reumatoide da cultura       fibromialgia dos vade-mécuns

badamecos de longo curso


       está chegado o tempo do ócio
       às abas vulvares e rociadas
                           do pantanal remoto

             os infiéis sufocam
             nos rebentos odiosos
             do cipreste morto

                    a lua cheia          convidativa
                    adivinha os teus anseios
                    reflectidos em pálidas nuvens
                    tão próximas e distantes
      

o objecto em si

                           o erro da consciência

o tempo        sempre o tempo
que passa
              que não passa
                                     que escasseia
                                                         que concebe
que bebe e é bebido
                             que morre e mata
                                       ilógico
      impiedoso


                    sempre a puta da consciência
                    e das coisas que nela navegam
                    no cornudo tempo psicológico


coisas que são e não são coisas

se a minha consciência é realmente consciência

ou se as coisas que o não são o são

             e há coisas sem consciência

                                                        talvez
consciência
                    sem coisas

as adoráveis percepções amarrotadas dos sentidos pesarosos e escandalizados


                                         suave milagre


a terra gira amalucada da mesma forma para os embriagados do que para os cosmógrafos de sua majestade        daí nasce toda a ciência obsoleta estribada nas leis arrogantes das cátedras embrutecidas
desde criança que na minha falsa timidez vi nas palavras dos tratados que à força me impingiam a magna parvoíce das deliciosas ambições dos eruditos        brutos embevecidos por discursos dignos dos mais extraviados sofistas
hoje poucos são os que lembram esses mestres barulhentos e ocos como tambores em dia de comício
a cada quatro anos nova arruada para um mesmo povo que sonha com amores de encantar e adormece no colo dos demónios-sempiternos
saudemos o grunhido do envelhecimento e a morte das instituições      dos nobres-sem-tostão      dos estadistas      da argumentação falaciosa dos trabalhadores e das promessas ignóbeis dos sindicatos e corporações
             sordícia que o tempo corrói


cidade dos cem portões e mil torreões
mil eram os alabardeiros
             nos semideiros sonolentos estacara a cavalaria

nela os desafortunados soldados famintos sorriam-se dos estorvos da estratégia contando as horas nos dedos vacilantes
da sabedoria
sem que soubessem
que a sua única fé
era a morte

o remordimento do final do dia
a torrente plana do recreio da vida
consciência de pesadas vestes

o ameaço circunspecto de um cerceio no estuário do denodo
crime imperfeito de pestes ancestrais


heróis-do-descanso        como é fácil e pouco exigente dar voz de comando no areal        ó generais-do-arneiro almirantes-do-ribeiro-manso

                    ide
                        naveguem


       sempre para sul
                           busquem e
                           rebusquem
                           novas terras
                            negras-altezas
                           mulheres
                           monstros
                           semi-deuses
                           diamantes e
                           rubis
                           riquezas

barca barinel e caravela
                                  aproai-vos ao tempo
                                  bolinas imperfeitas
                                  singraduras silenciosas
                                  abatimentos fatais

o maior perigo do mar é a terra

             ide
                 pobres
                 presidiários
                 condenados
                 mendigos
                 aventureiros

e trouxeram nos porões sujos e fedidos
                    escravos
                    escravas
                    crianças
satisfazendo libidinosos anseios

no convés
               especiarias
               oiro e jóias
               sândalo


história de porcos-negreiros

escândalo

gente tão forte com os fracos e fraca com os fortes
             tão temente a deus como ao diabo
             gemeu e rangeu os dentes
             na hora da morte
enquanto os heróis
                             jazem
                             pó
                             nos panteões
                             nos mosteiros
                
      

a vida contínua
                           no fenecimento eterno

o deslumbre
                           do despojado

um único passo
                           em leve movimento

pássaros voando em círculos
                                           na cegueira
                                                            do vento
            
             glória na terra
             à madeira sepulcral
             ao vinho nupcial

o esquecimento das notas brancas do alaúde
             e um corpo pisado pela
chama canibalesca

       quando o dia termina
                                       os corações
                                       regressam
                                       aos covis
                                       extenuados
                                       desesperados
aguardando a irrespirável ordem de despejo dos sentimentos
                    certeza única do rescaldo das marés-vivas de setembro


as folhas caem hoje das árvores da alameda com a violência do vento de sudoeste
             caem na minha consciência com todas as dúvidas de todas as ciências
       
                                          merda para as ciências
             para os afiliados das academias

             capitulam como se não tombassem e o vento de nordeste amainasse ou não existisse no quotidiano filamentoso das massas anónimas


uma mulher
tresmalhada
um padre
por benzer
uma loja
da mão esquerda
contos velhos
por cicatrizar
no canavial
queloidiano

a loucura
abraça
a cidade
o repelente
de insectos
debruça-se
à janela
o crepúsculo
tarda
nos olhos
tristes
dos transeuntes
as coisas
nomeiam-se
transitórias
na desordem
do quebranto

só o rio
desagua
no mar


a terra abraçada por vaticinadores
desvelos em tempo de outono
impaciência vertida por deuses embriagadores estremecidos em ferais a engrandecer as almas mortas

campanários velhos gerados nas águas cristalinas das fontes secas
antediziam a dádiva do fim da brecha entre céu e terra

do meu quarto viam-se os jardins anediados pelas névoas matinais
trespassando incólumes as entranhas das flores
bem perto o ribeiro murmura embalado por estilhaços de sol
nele corre o pretérito incendido pela música cega composta pelo gotear surdo das cascatas
e a dor da remigração caiada por agonias


um poeta bondoso
sentou-se na minha mesa em convulsiva e falsa reconciliação com a profissão
falou de amor   da revolução dos oprimidos   do partido das massas   da força do povo   da virtude   do vício   da verdade e da mentira
                    de tudo o que cresce
                                                    do que morre
                    das leis do acaso
       dos seus livros-sátiras
                                         e suas consequências

                    bebeu o café que paguei

       os poetas-profissionais andam sempre à míngua de óbolos

             tamborilou com os dedos na toalha desgastada pelo lodaçal das palavras sujas de anos

cerimonioso pediu-me um cigarro
e emudeceu na nuvem do fumo pecaminoso
estupidificado e temente como alma-viva constrangida ao crematório


estou aqui por estar
                                  nestas páginas
                                  grotescas
                                  doentias
                                  sem fotos
                                  dos antepassados
                                  putrefeitos

espelham a transpiração da noite acesa
nos feitos dos que partiram e que
                    tiveram nomes
                    cartões bancários
                    carros velozes
                                         mulheres
                                         alguns filhos
um círculo do nada ao nada
                                         
                                          bastardos                                    

as mãos acordaram
subitamente
sustendo a curva da estrada
no reflexo labiríntico
da malícia


             estar por estar


                    o poeta
                                o trem
                                as letras
                                rasuradas
                                pelos trilhos
                    o poeta
                                a gare
                                a pulsação da chuva
                                perpendicular ao
                                regresso
                                na vertigem
                                medonha
                                da escuridão divina


                           apenas estar

                           sem ser

                           sem-tempo


             ouvir e olhar como quem vê e olha


entrámos no túnel
                           parecia não ter fim
o cheiro a carvão queimado
       sonho afogueado e feliz da puerícia
onde a palavra agora se confundia com saudade
             e a arraiada com eternidade

o sidónio caminhava lentamente na calçada romana      a vida consumira-o
             a morte do único filho entregara-o à sua própria morte
       tinha sempre os olhos rasos de água      plácida lagoa desabitada
                    o sidónio existe      digo eu
                    existe porque eu existo
quando ele morrer eu deixarei de existir
se eu morrer primeiro será ele que perderá a sua triste existência

             o mundo
                            será um amontoado
                                                           de destroços
                            sem lembranças

mas a realidade verdadeira ou falsa existe

                     e eu
vindo sem saber donde
             ouço o eco de longínqua galáxia
                    no vazio cósmico
dos destroços de vidas passadas
                    e no ar
                                  o cheiro adocicado da seiva do martírio inglório
lugar distante onde os cristais brilham no topo dos mastros amarelados


             afasta este cálice de mim      este é um país de escombros
     
             múmias e palhaços à presidência
             pierrôs e arlequins ao governo                                 
             histriões e parlapatões ao parlamento
             vendilhões de tradições

             esquerdas e direitas e nauseabundas arqueações
             tratados convenções e falsas intenções     

mutilados mentais transfiguram amor em ódio e pedem-me que os aceite no meu regaço
turba de corsários reinventai-vos        forjai-vos bebedores-de-cataménio        apresentai-vos aos rebanhos de gado miúdo com nova catadura        convencei-os de que não cagais 
merdosos fraldiqueiros        pajens de vossas ventosidades
vendedores de quimeras flatulosas        bolsas fartas de ignomínia        insensíveis aos
soluços biliosos nas veredas e às tenebrosas alcovas onde as brisas se embebem de penúria e
as flores silvestres se refugiam nas pedras roladas do muro derribado

em todas as palmas das mãos abertas ao firmamento com cravos ferruginosos expostos à adversidade        estulta ilusão dos desvalidos que vos alimentam
imemorial voo da prostração da fome cercada por um mundo gerado pelo desdém do esquecimento


nona hora na quinta
debaixo deste céu
todos os homens são iguais


vencer os poderes da natureza        da impermanência oculta na sua concha dourada
esta é a terra das armadilhas
dos génios orgulhosos        talentos do rocambole de terrail
servos da devoção e da inacção

um anjo desamarra-se do mais profundo dos sorvedouros e esfrega os olhos na face poenta da claridade
paciência        diz-nos
perseverança        bisa
esperança        insurge-se
caridade        desespera
compaixão        enfurece-se
tudo com feridas abertas        infectas e virulentas
voz que clama e ruge num planeta em pranto

ora
estou para além
da ilusão
do mundo
de mim
por segundos
toco o real
suma heresia
de um crepúsculo
final


o
  norte
          da infância
partir para o norte
                            definitivamente
                            decididamente
                            irreversivelmente


assassinámos a realidade dos montes desertos
giesteiras do nada contorcem-se ao som dos raios de sol
na encosta os povoados são bandos de aves em devaneio
e a estação deserta apenas uma passagem negra e húmida na voz do silêncio
crisálida ilusória de alma tumultuosa
contemplada num fio de prata a emergir das montanhas
a vereda vazia da brisa mental
a morte derramada nas águas verdes do lagoacho
da erva-da-fome
que venha o manto róseo da solidão e da enarmonia
contraponto do fatal homicídio do pensamento
e do tempo


o sul
       da adolescência
                      tardia
                               mar
                               mulheres
                               sexo
                               e rum
                               para amar

onde o mênstruo das águas
circula serenamente
música divinizada
dos passos da morte enleante

       meus amigos        golfinhos do espichel
       olhos nas lágrimas do oceano arado por       mágoas e alegrias infindáveis
       hoje digo-lhes definitivamente adeus        não    nos tornaremos a ver      amigos como tantos   outros nascidos nas derrotas dos navios    mercantis     nas jornadas costeiras nos portos   atlânticos e mediterrânicos e nos bares dos      cais das amarrações
       acidentais        como vós criaturas marinhas       que ides continuar a vossa dança noutras     vantes
       na graça dos cânticos faustosos erguidos ao       paredão das vagas

vagueio pelo terraço
vejo-os no reflexo da barra
no assombramento dos velames espectrais


as estrelas
entravam
pela frincha
do través
na serenidade
da noite

            
            o mar a sul

                              jazigo de naufragantes

                      dos erros de rumo e estima

                      vítimas dos rituais macabros de torrentes balsâmicas

                            devotava-se descontínuo aos surtos lunares

       párpado cerrado ao destino colorido de insustentável penar

                           e dos gestos das tormentas numa alma seca de amores
      

       a despedida é uma parte de nós que se arreda
       é um amor que se dá sem se dar
       um dom sem palavras ou gemidos
       um padecer que não nos basta
       no infeliz apartamento do mar

                                 
qual a menor distância
        a maior separação
        a mais pequena ambição
        a maior paz

                                        linha
                                        recta
                                        ou
                                        curva
                               elíptica


às de espadas no tempo que passa
às de copas nas pernas virgens do desejo

brota a túlipa-negra
da rua escura
nada há sem ela

que me importa se os carris estão fixos na sua trajectória e as estradas delineadas por montes e vales e se cada cidade do mundo tem uma estrela que cai sobre ela à hora certa norteando a rota do mareante sem tino        se o teu jovem rosto é o sossego insistente desta tarde epidérmica em que as abadias envelhecidas desagravam a soledade da derradeira rosa no cálice derramado        se o novíssimo cárcere sangrante de neblina púrpura está vazio e manso sem o menor estrépito da ampulheta
               fundamento
                                  dos elementos
                                                        verticais
das sombras enviesadas das patas da existência

no firmamento
o tempo
jaze
numa translucidez
concreta
e num
equilíbrio
couraçado
por
relâmpagos
que regressam
em cada ensejo
à fonte modelo
da inocência
que invejo

                
na alma desvendada
                                  pelos dedos
                                  da morte
                                  branqueada
                                  no coração
                                  das aves
                                  que
                                  aos primeiros
                                  alvores
                                  perfumaram
                                  o céu
                                  com vozes
                                  lustrosas


para além das montanhas ressequidas de longas rugas a dança circular das estrias
das nuvens esventradas por cimitarras malsãs
das cidades incendiadas por archeiros inoportunos       

o silêncio aborta nas vísceras do desalento
o feto apodrece no ventre nocturno da sinagoga alcoolizada
o nascituro sucumbe às mãos da impiedade do sol que se põe

as ruas estão de luto        vazias        timoratas e entontecidas        a mesquita desprezada
em cada esquina a semente escarlate da discórdia
em cada porta um símbolo execrável desenhado a sangue novo contrastando com a falsa religiosidade da cristandade

nau que se embebe nas suas próprias asas
proa virada às vagas quentes do invejável cantar pelágico
o través cercado das mais violentas blasfémias

um mar de todas-as-dores tingido de vermelho-vivo
trágico-cómico
e sem que se veja

há algo que percorre o tempo
corroendo-o
traça que devora lentamente a catedral do acaso

ninguém escolhe a alma visceral ou a dádiva de um nascimento desapropriado
os passos contados ao peso e com o gume acerado da velha respiração arquejante
onde o amor se apaga e o mar se encapela

medito na lei que desconheço
aves silvestres sobrevoam a noite
o sono morreu nos portais da angústia
                    nada de novo
                    no tudo-visto
a árvore da vida entoa seus cânticos fúnebres
lamentações da irmandade dos seios com as ancas sustidas entre muros do rio calmo
folhas asfixiadas pelos ventos mutantes
ápices que consomem os frutos ainda verdes e a palha seca da seara por ceifar
os leitos de amor desfeitos cumprem a profecia
de idosas ânsias coroadas de espinhos taciturnos e neutrais
virtuosa arbitragem das linguagens ulceradas
sepulcros fermentados pela ambição

demais visto

                    ao fim da tarde
a luz desceu magnífica
                    sobre os meus ombros

                    o tempo escasseia

             ergui os olhos
             fingindo pensar
             com a gravidade
             de uma súplica
             tão artesanal
             como a paixão
                                   
                                  o embrião da solidão

no prado a égua agitava-se a cada respiração
calcando desdenhosa a erva do templo
invadido por uma multidão de crentes minúsculos
                    insignificantes

                           uma cigarra

não páres de cantar amiga
vem ver o meu pensamento
a ressumar amarguras


na planura os lábios vegetais        as asas atrozes da luxúria
sombras que se iluminam
na sonoridade
do impossível perfeito

estou no campo        é natural que existam formigas num percurso incompreensível        um cão ladra ao longe enquanto alguns pássaros vão preenchendo a paisagem
                           um cão
                                      um latido
                                      um vagido
                                      um verso lido
             sem arte          sem ti
             sem a pontuação dos teus seios
as formigas são milhares num carreiro que parece evitar-me
umas vão outras retornam tocando-se amorosamente            em que estarão a pensar
eu penso nos meus mortos
sentado no milenar banco de pedra da quinta apuro a visão o olfacto e a audição
de quando em vez ouve-se uma rã enquanto duas vacas pastam na quietude da encosta
                    a noite
                           debruça-se no orvalho
um corpo ascende à janela dos fundos
       é bela
sonho que oculta devaneio
                    deixo de a ver
                    leio nas formas apagadas
                    de permeio
                    a essência do desejo
                    lâmina temporária
                    de humana crueldade

a minha tristeza que não é mais do que uma plangência sem causa      deve ser idêntica ao insulamento do colossal aranhiço que deambula na banheira
ainda não me decidi a aniquilá-lo        não é este o seu tempo      diz o eclesiastes      digo eu justificando o sumo da misericórdia
não desejo ou se desejo finjo não desejar tomar banho        não me apetece nada        trotear a buena-dicha
dormir sem sonhos tão-somente

                    tão-sem-tempo


o peso das revelações
             é sempre um fragmento
da melancolia

abatimento que não cala
             o corpo dolorido pelo medo cinzento
                    humilhado pelo desconcerto mudável da                                              
esfera toldada de um qualquer lugar feliz


o amor e seu horizonte

de utopia e boqueirões

estava presente no rumorejo

da noite e na blandícia

erma enquanto

lá fora o rafeiro ladrava

às ramagens e rameiras

com a ternura

de quem se amplia

e porfia na capitulação do espaço


é triste quando os nossos olhos
já não vêem
a alegria esplêndida
do doirar do dia
o desassossego da dança
frenética de
uma tarde ventosa
ou a paisagem
revestida a anjos
no voo em fuga
das mulheres nuas

as ruas
cantam
sobrepostas
o burburinho
do retorno
à mesma
existência
opressiva
sem rasto
das horas
de metal
poisadas
na transparência
do cimo
das árvores
em penitência


quando era petiz flutuava no ribeiro alheio ao perigo e penetrava a realidade com a claridade simples dos santos e inocentes      nesse tempo de paz

                           bastava-me

consumia as estações gloriosas
o tempo discreto das amoras
sem confidentes


e havia na aldeia um triste homem

tinha nos olhos
a inquietude do tempo
procriado por gerações
de inúteis

seus ombros
desconheciam a amplitude
da sensualidade
e o odor táctil das chamas oblíquas
que convergem
na fissura de todas as escuridões

trazia a bagagem
às costas
o mundo apagara-se
nas espáduas
escavadas
pelo declínio entrançado
do escurecer
num lugar tão distante
de andrómeda
onde se haviam urdido
todos os futuros
e aberto
todos os covais

agora estava junto de si
como albatroz só
no grande mar oceano

adormeceu isento
de revelações sob a
ramagem de um ulmo
tendo por cabeceira
os reflexos do nojo


eis que a claridade surgiu
fastienta         escorria pela forte e farta cabeleira de deus
prostrando-se aos objectos deteriorados pela maresia das memórias

uma melodia
derramava um som
impuro   enarmónico
nas veias do muro
da casa deserta

quis escutar
                   
                    mas estava surdo

quis falar

                    mas estava mudo

       aquela amaurose que nem o mais genuíno dos concertos concerta


estamos juntos nos meus pensamentos      ébrios       voláteis      ternos e desnecessários
eu e eu
em criança quando chovia abrigava-me na igreja da aldeia e rezava trinta padre-nossos e cinquenta ave-marias pelas almas do purgatório
achava como quem não acha nada e não tem nada para achar ou que achar que as beatas eram santas mulheres e os padres santos homens        mas não      comiam-se mutuamente      sabe deus   só visto porque contado ninguém acredita      enquanto soletravam credos em latim
ah portugal dos enganos e dos bastardos dos falsários e iletrados
na minha virgindade corpórea e intrépida inocência espiritual vivia a escuridão masturbatória das noites-sem-fim        em desvirtude boca cerrada esgaravatava para aromatizar os pérfidos pensamentos julgando-me o maior dos pecadores      o merecedor das penas eternas
pareciam-me felizes as pedras as árvores os rios e as nuvens sem desejos ou instintos

lamparinas alumiavam-nos as silhuetas nos fins de tarde ao som das novenas ou das missas de sétimo dia
em latim
             sempre em latim
como convinha a quem nem sabia ler

as beatas adoravam todo aquele magnificat e outros prazeres nupciais decadentes        foda-santa aspergida a água benta      conação borrifada por sacrossanto-esperma
não havia rata que resistisse ao encanto de um pau-santo      e entre paters e avés iam nascendo uns tantos
enquanto os chavelhudos-domingueiros tiravam ao senhor abade respeitosamente o chapéu

estarão suas santas-mulheres no céu

afinal era obra tão necessária ao povoamento


envelhecer faz-se num grande silêncio
nascer e morrer a cada instante
saber estar desacompanhado      empoleirar-se no trampolim pendente dos acontecimentos
       sem criar raízes no tempo
                                               levantar
                                               esquecer
                                               renascer
                                               no parapeito
                                               da impermanência
                                               sem direcção
                                               filosofia ou
                                               ciência

ser o que não tem nome
tocar as vestes da vida com as mãos dormentes

o nada que é tudo
                            soberano e
                                            adocicado
pelo amor gratuito
                             nas alegrias
             nas feridas
                              profundas
                                             da infelicidade

bendito o que está em todos os lugares e em nenhum
             enquanto a vida vai respirando a poeira que se acumula no fluir das horas


o sino

aquele som inconfundível das horas

envio-te uma mensagem nas asas do vento

já não és aquela jovem terna

viçosa como o jasmim da floreira de pedra

do jardim desocupado e escaldante

és mais uma no tempo de verão

que flutuou nas águas redondas

do dulçor de meus dedos

e agora

sem amante que te contemple
a eterna ausente


um abraço
voltei a ver-te como te vi
na primeira vez

desabituara-me
agora um outro céu alberga o alento

ninguém sabe
que mentimos
a nós
e
omitimos
aos outros
suspensos no prodígio de um simples olhar

na tarde            o enlaço
um beijo fugidio
e um novo adeus

       quantas vezes quis dizer que amava
       levantar a voz ao céu surdo
       ter na alma as pupilas das nuvens
       e nas mãos o sacrário salgado dos despenhadeiros

       falemos então      digamos as palavras frenéticas da borrasca
       o que nos é proibido

       a verdade cai como mortos no outono e as   lágrimas das crianças com fome
       corpos estendidos no areal sem fim
       cercada por bruma laçada converte-se a uma     qualquer religião      mente e minto
      
       vamos diz            o amor é apenas instinto
             uma desculpa para estar vivo


visitei-a na mesma rua de sempre

                                  junto ao mar
      
                           depois de longa viagem

                    percorria-a um hálito de tristeza

       a certeza do fim

                           estava doente


os ossos iluminados

                                  a carne em sombras


dá-me a tua mão      disse-lhe

       sabes que vamos morrer

morremos sempre
                           nas ruínas do prazer

não chores
afinal a morte na orla da praia deserta
deixa nas covas do areal nossas dores

não chores

                    vá

dá-me tua mão


como é cruel o tempo


sou o que te espera sem esperar
o que julga ser a tristeza natural
que nada busca nem quer buscar
que sempre aceita por bem o mal

que acontece e que o não magoa
o que lhe parece que chamam dor
que vem e vai como a ave que voa
e mais não é do que de alguém favor

sou o habitante lunar
o monstro voador
o senhor do mar

apenas mais um sonhador
que nada tem para dar
nem ninguém para amar


e nessa suprema liberdade
sem ser e nada ter
feito nada e verdade
poderei morrer



sem a crueldade do tempo





Sem comentários:

Enviar um comentário